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29 DE JANEIRO DE 1999 1527

Passamos à discussão, na generalidade, da proposta de lei n.º 196/VII - Autoriza o Governo a legislar sobre a dissecação lícita de cadáveres e a extracção de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e de investigação científica.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado da Justiça.

O Sr. Secretário de Estado da Justiça: - Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: A Lei n.º 12/93, de 22 de Abril, que veio estabelecer o regime jurídico da dádiva ou colheita de órgãos de origem humana para fins de diagnóstico ou para fins terapêuticos e de transplantação prevê que a dádiva e colheita de órgãos para fins de investigação científica seja objecto de legislação especial. É com vista a dotar o ordenamento jurídico português de regras precisas e claras sobre esta matéria que o Governo apresenta a esta Assembleia a proposta de lei ora em discussão.
Nesta matéria, rege ainda, e só, a velha Portaria n.º 40, de 22 de Agosto de 1913, que dispõe que "(...) ficam à disposição das Faculdades de Medicina, para seus estudos, os cadáveres dos falecidos nos hospitais, asilos e casas de assistência pública, os quais, dentro do prazo de doze horas, decorridas depois do falecimento, não sejam reclamados pelas famílias para procederem ao seu enterramento". É esta a lei que temos.
Pacífico é o entendimento de que urge definir o regime jurídico destes actos, facto realçado por diversas vezes pelo próprio Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida que, na sequência de um parecer de 1991, recomendou à Assembleia da República e ao Governo, em Março de 1994, a publicação urgente de legislação.
Mas não são apenas imperativos jurídicos que servem de fundamento a esta proposta.
A carência de material humano para fins de ensino e investigação constitui, de há muito, uma realidade preocupante, com substanciais e inevitáveis reflexos negativos no progresso das ciências da saúde e na formação dos profissionais desta área.
Sendo um problema que a generalidade dos cidadãos desconhece, este é, todavia, um assunto a que urge dar solução, solução que tem sido, aliás, viva e reiteradamente reclamada pelas mais diversas entidades, muito particularmente pelas faculdades de medicina e sociedades científicas médicas.
Há que reconhecer que as condições em que até hoje tem sido possível obter material humano para estes fins se têm revelado de difícil aceitação, quer no plano ético, quer no plano normativo, como, aliás, expressamente se refere em parecer de 1992 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
A falta de regulamentação, como é conhecido, tem possibilitado o recurso a expedientes diversos, articulados com circunstâncias fortuitas, com contornos nem sempre claros, de legitimidade duvidosa, tolerada apenas em face da nobreza dos fins em vista.
A adopção de medidas destinadas a regulamentar e a dar transparência à utilização de cadáveres para fins de ensino e de investigação científica deve ser efectuada na plena defesa da dignidade da pessoa humana e do valor de solidariedade que essa dádiva traduz, no escrupuloso respeito devido às pessoas.
A presente proposta de lei tem em consideração todos estes aspectos e respeita rigorosamente os pareceres do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
À semelhança da filosofia presente na Lei n.º 12/93, relativa à colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana, acautelaram-se, nesta matéria, de forma rigorosa, os princípios éticos fundamentais.
Respeita-se a regra fundamental do primado do direito à decisão da pessoa, seja ela positiva - como expressão de alto sentido de solidariedade -, seja ela negativa, e constitui o elemento primordial a levar em conta para a legitimação dos actos.
Entende-se ser de recorrer aos meios já existentes ao nível do Registo Nacional de não Dadores, que constitui um sistema com provas dadas. E entende-se também ser de estabelecer que a oposição é livremente revogável e se manifesta pela mesma forma que a indisponibilidade para a dádiva de órgãos ou tecidos para os fins previstos na Lei n.º 12/93, bem como que os não dadores já inscritos no RENNDA se presumem não dadores para efeitos da presente lei.
Por se tratar de uma matéria de uma sensibilidade extrema, consagra-se a proibição expressa da comercialização de cadáveres e de peças, tecidos ou órgãos deles extraídos, bem como a proibição da revelação da identidade da pessoa cujo cadáver tenha sido dissecado ou do destino dado a peças, tecidos ou órgãos, estabelecendo-se uma sanção penal autónoma para os actos de comercialização, em virtude de os bens jurídicos em causa justificarem uma decidida intervenção do direito penal, em conformidade, aliás, com as preocupações que têm vindo a ser demonstradas ao nível das diversas instâncias internacionais, em face de novas formas de criminalidade organizada envolvendo o tráfico de órgãos.
São estes, em síntese, e muito rapidamente, a justificação e os aspectos fundamentais desta proposta de lei.
A sua aprovação representará, finalmente, o preenchimento de um inadmissível vazio do nosso sistema jurídico, que se prende com a dignidade da pessoa e o respeito devido aos mortos e suas famílias, e constituirá uma condição indispensável ao desenvolvimento das ciências médicas no nosso país, bem como um contributo de grande importância para o próprio aperfeiçoamento do sistema médico-legal que se iniciou, também aqui, com a aprovação por esta Assembleia da República da proposta de lei n.º 108/VII, que veio a dar origem ao Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Secretário de Estado da Justiça, Srs. Deputados: O tempo é muito curto mas, em todo o caso, gostava bem de falar sobre este tema.
Antes de mais, começo por salientar uma nota: o Governo não foi gentil para com a Assembleia da República, porque não lhe enviou, ou, pelo menos, não chegou ao meu grupo parlamentar, o projecto de decreto-lei. Mandou um ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que o criticou, porque não era conforme à sua doutrina, e o Governo fez bem, porque emendou o referido projecto. Tratava-se de uma questão que tinha a ver com o consentimento.
Mas julgo que esta omissão do Governo também é explicável, porque esta Casa tem uma longa cultura institucional sobre esta matéria. Ao longo das duas últimas legislaturas, sobretudo na última, não faltaram aqui iniciativas, e importantes, sobre esta questão. A proposta de