0025 | I Série - Número 008 | 06 de Outubro de 2006
Em primeiro lugar, no que diz respeito à proibição do número único nacional, é preciso saber até que ponto o cartão de cidadão não viola a proibição constitucional de atribuição de um número único a cada cidadão, problema aliás levantado no primeiro parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados. Neste momento, não sabemos qual o seu novo parecer sobre a nova versão que o Governo agora apresentou.
Por um lado, o número deste cartão é composto pelo número de identificação civil, acrescido de três dígitos autónomos do próprio cartão de cidadão. Estes três dígitos corresponderiam à série ou registo técnico do cartão (prevendo já várias eras ou etapas técnicas de emissão do mesmo). Mesmo assim, este número constituiria o risco de ser um número único agregador da demais informação associada ao cidadão.
Por outro lado, este número de cartão (número de identificação acrescido dos três dígitos de série) só se manteria durante a validade do cartão de cidadão. Ou seja, no fundo, seria um número que apenas identificaria o cidadão durante o período de vigência do cartão e, após a sua renovação ou cancelamento, tal número seria substituído por um novo, processado da mesma forma.
Se assim for, parecem dissipados de alguma forma os riscos da formação de um número único nacional. Resta, no entanto, conhecer ainda o parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados. Todavia, deve ser sempre acautelada esta exigência ao longo do processo de vigência das regras relativas a este cartão.
Quanto ao manuseamento da informação, há que ter novamente em conta o Parecer n.º 1/95, da Comissão Nacional de Protecção de Dados, na altura a respeito do cartão de identificação do utente do Serviço Nacional de Saúde. Neste parecer, a Comissão Nacional de Protecção de Dados alertava para o seguinte: "Não parece estar excluída a possibilidade legal de "entidades privadas com actividade na área da saúde" poderem vir a solicitar o preenchimento do formulário (...). É desejável que, se esta possibilidade se verificar, seja definido o modo de participação no processo de recolha e "manuseamento" dessa informação por parte daquelas entidades."
Na presente proposta, a possibilidade de gestão de informação por empresas privadas é expressamente manifesta, nomeadamente no n.º 3 do seu artigo 38.º, quando se refere "pessoa singular ou colectiva, serviço ou organismo a quem sejam confiadas (...) operações relacionadas com o cartão de cidadão".
Pergunto: não será esta informação demasiado sensível para ser gerida por entidades privadas? Tendo em conta a natureza dos vínculos laborais muitas vezes mantidos por empresas de gestão de informação, não se estará perante um risco de dispersão intolerável de dados e informações pessoais?
Tudo parece indicar que faria mais sentido excluir, ab initio, o tratamento ou o manuseamento de todos os dados contidos no cartão de cidadão, a todo e qualquer título, por entidades privadas.
Relativamente às impressões digitais e tratamento da informação, atente-se no artigo 14.º da proposta de lei, que regula a recolha e armazenamento das impressões digitais. Tais informações são acessíveis, nos termos do seu artigo 5.°, às "autoridades judiciárias e policiais". No entanto, nada é referido quanto ao possível tratamento e manuseamento destes dados por entidades terceiras, nomeadamente a nível de gestão de informação e/ou organização de bases de dados - note-se que as mesmas vão ficar também armazenadas no "circuito integrado" [artigo 8.°, n.º 1, alínea f)]. A nosso ver, justifica-se inteiramente alguma medida a tomar ou a ser tomada para acautelar também este aspecto.
Quanto ao acesso aos dados contidos no cartão, questão não referida nesta proposta, há que saber quem e que entidades, no futuro, terão cesso à leitura dos dados contidos no cartão. Ou seja, será possível que uma entidade bancária retire o número de identificação fiscal directamente através de uma leitura óptica do próprio cartão e com isso o incorpore na sua base de dados?
Se bem que estes e outros elementos de identificação sejam já hoje facultados a várias entidades privadas, tal como acima referida, a questão agora coloca-se quanto ao acesso aos dados contidos na plataforma electrónica do cartão. De facto, encontrando-se na face visível do cartão todos os dados que possam vir a identificar o cidadão (número de identificação civil, número de contribuinte, número de segurança social e número de Serviço Nacional de Saúde), não se compreende que possa ser facultado outro acesso electrónico ao cartão por parte de outras entidades.
A nosso ver, ao não estar excluída esta possibilidade do diploma em causa, poder-se-á estar a "abrir a porta" a utilizações abusivas das funcionalidades do cartão.
Finalmente, quanto às necessidades especiais de aceso à informação, não se prevêem medidas concretas na actual proposta de lei para efectivar a referida "inclusão dos cidadãos com necessidades especiais na sociedade de informação" (artigo 21.º, n.º 2). Ora, parece-nos que seria de toda a vantagem equacionar desde já medidas concretas, prévias à implementação desta medida.
De facto, a implementação de todo este sistema de modernização administrativa arrisca-se a deixar de fora uma larga faixa da sociedade portuguesa - são conhecidas as enormes assimetrias nacionais quanto à implementação e familiaridade dos cidadãos com as tecnologias de informação.
Sr. Presidente, Sr. Ministro: Ao não prever medidas concretas que acautelem este risco, o Estado poderá estar a dar origem, nos seus próprios serviços e funcionalidades, a uma discriminação indirecta entre os utilizadores efectivos das funcionalidades anunciadas e os que serão excluídos da mesma, o que será tanto mais grave quanto se trata de serviços públicos essenciais.
Uma vez que se trata, como o nome quer indicar, de um cartão de cidadão, era imperioso que, desde o início, se acautelassem expressamente os direitos cívicos de acesso à informação.