I SÉRIE — NÚMERO 94
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Não é bem assim, porque bem sabemos que, não estando de forma explícita, há uma remissão à Carta dos
Direitos Humanos feita na Constituição da República Portuguesa.
Começo por aqui, porque a questão do desperdício remete-nos para a necessidade de assegurar o direito
ao acesso à alimentação a todos e, se a questão da redução do desperdício deve ser um objetivo político,
então, o «direito à alimentação» deve estar no centro da atenção deste Parlamento, enquanto direito
fundamental.
Porque desperdício e fome, carência alimentar e má nutrição, distribuição de rendimentos, desigualdades e
pobreza, fazem parte da mesma equação não nos deixemos ficar pelas ideias feitas, pela dimensão simbólica
ou por sentimentos morais.
Passemos das palavras aos atos, porque é sempre mais fácil isolar os problemas, ficarmo-nos por vagas
recomendações, por compromissos sem metas, deixando as iniciativas legislativas na corrente dos dias e, pior
do que isso, não olharmos para o quadro legislativo já existente.
Curiosamente, no Projeto de Estudo e Reflexão sobre o Desperdício Alimentar (PERDA), refere-se que, do
ponto de vista legislativo, é necessário, para facilitar a doação ou aproveitamento de alimentos, «analisar e
ultrapassar os obstáculos colocados pelas diversas normas relativas a responsabilidade civil, saúde pública,
higiene alimentar e defesa do consumidor e que podem ser eventualmente superados através de uma
consolidação legislativa que erradique algumas das contradições que subsistem».
Num tempo em que a consolidação legislativa passou, finalmente, a prática neste Parlamento, aí está um
desafio interessante.
Mas é evidente que a questão do desperdício alimentar, para além de uma questão ética, é, acima de tudo,
uma consequência do nosso modelo económico e ecológico. E, sendo uma questão global, só pode ser
resolvido através de soluções regionais e locais.
Em matérias importantes como são as questões das alterações climáticas ou da energia, a Europa é
extremamente ambiciosa e assume a liderança mundial. Porém, numa matéria da máxima relevância para o
desenvolvimento universal como é o combate ao desperdício alimentar, importantíssimo para combater a fome
— um dos objetivos do milénio —, que faz a Europa? Discute, também, simples recomendações.
Deveria ir mais além e assumir, também neste processo, a liderança mundial no combate ao desperdício
alimentar e à fome.
Aguarda-se, assim, com expetativa, para o final deste ano, uma nova diretiva sobre economia circular.
Esta diretiva poderá marcar uma mudança, um novo estímulo para um modelo económico sustentável para
a Europa, a caminho do desperdício zero, com a valorização de produtos em cadeia, passando de um padrão
de crescimento de tipo «extrair-fabricar-consumir-deitar fora», baseado no pressuposto de que os recursos são
abundantes, para um sistema de economia circular que mantém o valor acrescentado dos produtos durante
tanto tempo quanto possível e elimina os resíduos, numa perspetiva de desenvolvimento sustentável.
Quando se fala dos 200 milhões de pessoas que poderiam ser alimentadas com alimentos
deliberadamente desperdiçados todos os dias na Europa, deve ter-se a perceção dos milhares de hectares de
solo, dos milhares de toneladas de adubos e pesticidas, dos milhões de litros de água, das dezenas de
milhares de vidas de animais domésticos e marinhos que também são desperdiçadas com esses alimentos,
dos impactes sobre a biodiversidade, a saúde ambiental e os serviços dos ecossistemas, que são, igualmente,
desperdiçados devido à ineficiência económica e social que se tornou sistémica.
O desperdício alimentar planificado não é apenas um problema de índole social ou de urgência
humanitária, representa também uma grande falha nossa em termos de proteção do nosso património comum,
na origem, onde tudo começa, assim como nos ecossistemas e nas comunidades humanas que os gerem e
dos quais dependem para o seu bem-estar e prosperidade social e económica.
A nossa obsessão com a perfeição gera por vezes atitudes que, mais do que estéreis, são
contraproducentes e danificam os mais frágeis tecidos sociais.
A questão das frutas e legumes, calibrados de acordo com regras que pouco têm a ver com a sua
qualidade nutricional, é uma das principais fontes de desperdício na origem, quer pela adoção de práticas de
gestão agrícola, quer pelas regras de comercialização. O mesmo se passa com as pescas e as chamadas
«capturas acidentais» ou «não proveitosas». Toneladas incontáveis de peixes e outros seres marinhos são
capturadas, acabando por morrer e despejadas borda fora, sendo que muitas dessas espécies já estão
seriamente ameaçadas em termos da sua viabilidade económica e até da sua própria existência.