I SÉRIE — NÚMERO 30
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Em consequência, pronunciou-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 5.º, 7.º
e 27.º, todos do citado Decreto n.º 109/XIV.
2 — Na ocasião, o mesmo Acórdão recordou que havia dois caminhos possíveis, muito diferentes, quanto
ao alargamento do recurso à morte medicamente assistida.
Passando a citá-lo: «enquanto os ordenamentos jurídicos europeus em que a eutanásia se encontra
prevista (concretamente, o holandês, o belga e o luxemburguês) admitem que a morte assistida possa ocorrer
sem que o doente sofra de uma doença fatal ou em fase terminal, a exigência inversa é feita nos
ordenamentos jurídicos do continente americano (concretamente, no canadiano, no colombiano e nos Estados
federados dos Estados Unidos da América que despenalizam o suicídio assistido — Oregon, Washington,
Vermont, Califórnia, Havai, Nova Jérsei, Maine e Distrito da Colúmbia)».
O mesmo Acórdão prosseguia: «esta diversidade de soluções normativas reflete a diferença de valoração e
de ponderação atribuída às mencionadas exigências de natureza objetiva relativas à proteção da vida humana
em confronto com a autodeterminação individual do doente».
3 — Na sequência da deliberação do Tribunal Constitucional, cumpriu ao Presidente da República devolver
o Decreto inconstitucional à Assembleia da República, sem o promulgar, como impõe o artigo 279.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa, o que ocorreu em 15 de março de 2021.
4 — Volvidos uns meses, a Assembleia da República alterou o Decreto n.º 109/XIV, considerado
inconstitucional, através do Decreto n.º 199/XIV, publicado no Diário da Assembleia da República, em 19 de
novembro de 2021, e chegado à Presidência da República no dia 25 de novembro.
5 — O Decreto n.º 199/XIV, além de introduzir alterações para fazer face à decisão e à argumentação do
Tribunal Constitucional, aproveita para aditar novas normas, que suscitam inesperadas perplexidades.
É o caso das normas respeitantes ao que era o requisito da exigência de «doença incurável e fatal», do
artigo 2.º, n.º 1, do diploma anterior.
Neste novo diploma, mantém-se essa exigência, nos mesmos exatos termos, no n.º 1 do artigo 3.º. Só que
no novo n.º 3 desse artigo 3.º, a exigência, para recurso à antecipação da morte medicamente assistida, passa
a ser «doença grave ou incurável». E, aumentando a perplexidade, a alínea d) do novo artigo 2.º, contendo
definições essenciais para a aplicação da lei, define a doença grave ou incurável como doença grave e
incurável.
6 — Isto é, no mesmo diploma e no mesmo artigo, o artigo 3.º, temos, primeiro, a exigência de «doença
incurável e fatal», no n.º 1; segundo, a exigência de mera «doença grave ou incurável», no n.º 3. A «doença
grave ou incurável» já é definida como «grave e incurável», na alínea d) do artigo 2.º
7 — Ora, uma coisa é uma doença grave, outra uma doença incurável, outra ainda uma doença fatal.
O legislador tem de escolher entre exigir para a eutanásia e o suicídio medicamente assistido, que são as
duas formas da morte medicamente assistida que prevê, entre a «doença só grave», a «doença grave e
incurável» e a «doença incurável e fatal».
Isto porque, no novo texto do diploma, ora usa «doença grave ou incurável», o que quer dizer uma ou
outra, ora define aquela como grave e incurável, o que quer dizer, além de grave, também incurável, ora usa
«doença grave e fatal», o que quer dizer que, além de grave e incurável, determina a morte. Não apenas é
grave, incurável, progressiva e irreversível, como acontece com doenças crónicas sem cura e irreversíveis, é
fatal.
8 — Esta é uma primeira razão para solicitar à Assembleia da República que opte entre o exigido no n.º 1 e
o exigido no n.º 3 do artigo 3.º. E, no caso de deixar de exigir a «doença fatal», opte entre a doença ser grave
ou incurável, como se diz no n.º 3 do artigo 2.º, ou cumulativamente grave e incurável, como se diz na alínea
d) do artigo 2.º
Em matéria tão importante como esta, respeitante a direitos essenciais das pessoas, como o direito à vida
e a liberdade de autodeterminação, a aparente incongruência corre o risco de atingir fatalmente o conteúdo.
9 — Admitamos que a Assembleia da República quer mesmo optar por renunciar à exigência de a doença
ser fatal, e, portanto, ampliar a permissão da morte medicamente assistida, ou seja, do suicídio medicamente
assistido e da eutanásia. Se assim for, alinhará pelos três Estados europeus citados pelo Tribunal
Constitucional e pela Espanha — que, entretanto, aprovou lei no mesmo sentido —, os quatro com solução
mais drástica ou radical, e afastando-se da solução de alguns Estados federados norte-americanos, do
Canadá e da Colômbia.