I SÉRIE — NÚMERO 36
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no site da Assembleia da República. A fita do tempo é, portanto, clara: um projeto de lei conhecido a 29 de dezembro é discutido a 3 de janeiro por uma Assembleia da República que terá de o votar antes do dia 15 do mesmo mês de janeiro, por ser esta a data anunciada para a sua dissolução.
A esta inusitada cronologia acresce um outro fator de perturbação: o projeto de lei discutido a 3 de janeiro é muito semelhante àquele outro apresentado pelo CH a 21 de dezembro — o que, em abono da verdade, se justifica pela circunstância de este ter em boa parte decalcado textos confecionados ao longo de legislaturas anteriores —, sendo certo que se votou contra aquele projeto de lei do CH e sendo ainda inequívoco que as iniciativas anteriores não vingaram por razões várias, mas seguramente também por terem sido alvo de apreciações muito críticas, que não se crê terem sido ultrapassadas neste Projeto de Lei n.º 994/XV/2.ª.
A discussão apressada deste projeto de lei na reta final de uma Legislatura abruptamente interrompida na sequência da publicitação de um processo judicial que envolveria titulares de cargos públicos sujeita-o, ainda, ao óbice incontornável de se estar a legislar «à flor da pele», o que é reconhecidamente desaconselhável e constitui manifestação evidente de um certo populismo penal, que não podemos reprovar aos outros se depois o acolhermos nós próprios. Mas legislar sobre lobbying «a reboque» de um processo judicial associado à queda de um Governo e à dissolução da Assembleia da República tem um outro inconveniente de monta: contribui para ocultar eventuais falhas no funcionamento da justiça penal que imporiam uma reflexão de fundo sobre aquilo que em tal funcionamento carece de ser alterado, fazendo supor que aquilo que faltou foi uma regulamentação do lobbying por parte de um poder legislativo procrastinador — linha de raciocínio esta que, por se julgar enganosa, não se crê que possa prestar um bom serviço à democracia.
Todavia, as razões de fundo para não se acompanharem as várias iniciativas sob escrutínio são de outra natureza. São mais profundas. Em primeiro lugar, evidencia-se a inexistência de dados empíricos que comprovem que a regulamentação nestes termos da representação legítima de interesses junto de entidades públicas contribui para uma diminuição da corrupção e para uma melhoria de qualidade da democracia.
Invocar a realidade da União Europeia — o único exemplo de direito comparado a que se recorre na exposição de motivos da iniciativa legislativa — é «pano curto para tão grande jaqueta». As especificidades da União Europeia — nomeadamente a distância, até a geográfica, entre os cidadãos de cada Estado e as instituições europeias — tornam mais difícil ou mesmo impossível a representação pelos próprios dos seus interesses junto dos decisores europeus. Além disso, é muito duvidoso que tal regulamentação do lobbying seja útil à prevenção da corrupção, como episódios recentes porventura confirmam.
Adicionalmente, cumpre notar que, ao longo dos últimos anos, houve sucessivas alterações aos regimes jurídicos aplicáveis a titulares de cargos políticos, seguramente orientadas para garantir maior transparência no exercício de funções públicas. Mas transparência não é sinónimo de devassa. Os titulares de cargos políticos têm direito à tutela da intimidade e da privacidade — o âmbito de tutela pode ser restringido pelo exercício de funções públicas, mas não dizimado.
Antes de se aprofundarem os deveres de transparência, seria conveniente avaliar todos aqueles que entretanto foram criados para, depois disso, se poder concluir, fundadamente, se há ainda lacunas que careçam de correção; sob pena de a falta de coragem para resistir a uma opinião pública voraz que não cessa de exigir que lhes sirvam em bandejas as cabeças de políticos vir a contribuir, apenas, para um maior descrédito dos agentes públicos e, consequentemente, da democracia representativa.
Por outro lado, face à lei penal que hoje temos, a representação de interesses ilegítima é claramente diferenciada da legítima. Para haver crime de tráfico de influência, não basta que se use a influência. A prática do crime pressupõe um abuso de influência. Haverá crime de tráfico de influência sempre que alguém venda um abuso da sua influência, real ou suposta, junto de um agente público. E haverá representação legítima de interesses privados sempre que tais interesses sejam defendidos através da argumentação leal. Existem, por outro lado, vários instrumentos, no funcionamento da Assembleia da República, que já garantem transparência às audiências através das quais as entidades privadas expõem os seus pontos de vista e defendem os seus interesses. Não logra, compreender-se, portanto, qual a necessidade e quais as vantagens do novo regime jurídico.
Finalmente, um argumento de fundo, que, de resto, foi insistentemente invocado pelos Grupos Parlamentares do PCP e do BE no debate ocorrido a 21 de dezembro último. É provável que esta regulamentação do lobbying se revele, afinal, bastante prejudicial à qualidade da nossa democracia, por encurtar o espaço de comunicação direta entre os cidadãos e os políticos, tornando o acesso a estes de tal modo complexo e burocrático que passe