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11 DE JULHO DE 1992

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susceptível de constituir um facto ilícito em relação ao ordenamento jurídico vigente.

Seja qual for o regime, histórico ou vigente, o problema do segredo de Estado levanta pelo menos as questões de saber: se é uma categoria admissível; se, em caso afirmativo, é possível uma definição material ou apenas formal dela; se, sendo ou não possível a formulação legal de um conceito básico, também é necessário identificar formalmente os suportes dos órgãos públicos que exclusivamente tenham competência para lhe definir concretamente o âmbito; quem, ou que órgãos, mesmo sem acesso ao segredo de Estado, devem ter acesso, como diz algures um autor, ao conhecimento do lugar do segredo; em que circunstâncias terminará o regime do segredo de Estado, por meio de que iniciativas e com que efeito na avaliação política, e eventualmente jurídica, do processo finalmente tornado público.

2— Apenas com o intuito de tomar saliente que o princípio da divisão dos poderes diversificou as questões ligadas ao segredo de Estado, lembramos que as Ordenações, no título viu do 5." livro, estabeleciam o seguinte: «Qualquer, que abrir nossa carta, assinada por nós, em que se contenham coisas de segredo, que especialmente pertençam à guarda da nossa pessoa, ou Estado, ou da Rainha minha mulher, ou do Príncipe meu filho, ou à guarda e defensão de nossos Reinos, e descobrir o segredo dela, do que a Nós poderá vir algum prejuízo, ou desserviço, mandamos que morra por isso.»

A disciplina continuava, com dispositivos severos e hipóteses várias predominantemente exemplificativas, e Pereira e Sousa no seu Classes dos Crimes (1830), anotava secamente que «aquele que de propósito as abre, e descubra o segredo delas, é reputado traidor, e incorre por isso na pena de morte».

Daqui resulta que o valor em causa é o da lealdade, geralmente definida como um sentimento, e correspondente atitude, de adesão a um valor exterior ao próprio, um chefe, uma comunidade, uina instituição, uma causa ou concepção do futuro. No caso, trata-se da lealdade política, que nos clássicos Platão, Aristóteles, Tucídides e Plutarco era a mais valorada das virtudes políticas em relação à cidade.

Pelo contrário, nos primeiros eseritores cristãos a lealdade mais louvada dirigia-se à Igreja e à fé e, até ao aparecimento dos Estados modernos, esse valor parecer fer--se mantido sempre presente na disputa com a lealdade ao poder político, pelo que teve muito de blasfémia a afirmação de Maquiavel sobre a necessidade de, por imperativo da moral de responsabilidade, perder a alma para salvar o Estado. Mas foi esta linha que se afirmou, sobretudo a partir do século xvm, com a fórmula de Rousseau, Religião Civil (Contrato Social, liv. 4, cap. 8), preenchida esta, variavelmente, com os conceitos de nação, povo, taça, classe, chefe, e assim por diante, inas sempre política. O Estado é a fórmula mais vasta que cobre ttxlas as variantes da raiz fundamenud da lealdade política em questão, e o segredo de EsUido faz-lhe apelo em termos de. a pretender acrítica, porque o acesso ao conhecimento dos interesses e procedimentos fica reservado a poucos, mas ela é exigida a todos.

A questão da divisão dos poderes, tendo em vista abolir a possibilidade do despotismo, não ignorou, antes de a engenharia social se transformar numa ciência aplicada, que o saber secreto e exclusivo é um elemento importante da capacidade de domínio do poder instalado, que a clandestinidade do Estado é favorecida pelo segredo, que

a arbitrariedade na definição dos limites do acesso ger.il ao conhecimento dos negócios públicos e a sua fiscalização faz perigar os direitos, liberdades e garantias, e até a paz civil e a paz internacional.

Com, pelo menos, mais a circunstância de que a evolução das sociedades avançadas implicou a diversificação das lealdades, que são múltiplas e por vezes contraditórias, sendo por isso frequentes, embora menos limitados às literárias consequências, os dramas de Abraão e Isaac ou Antígona. Nas épocas de crise política, stK±d e económica, a questão das lealdades múltiplas torna-se mais aguda, e os Estados, como foi observado, tendem para confundir lealdade com submissão e deslealdade com crítica.

Numa época em que tudo se internacionalizou, e a interdependência é a regra da estrutura mundial, também nos sistemas políticos, que não podem sobreviver sem lealdade, ttxlavia frequentemente se instala a ambiguidade: lealdade à nação, lealdade ao governo, lealdade à identidade nacional, lealdade ao partido, lealdade à missão adoptadas, lealdade aos dirigentes? A estrutura política conta com uma delas, e o segredo de Estado, instrumento do Governo, entre outras condicionantes, não pode deixar de ter em conta este fenómeno crescente e presente das lealdades múltiplas, que coloca os interesses que reputa fundamentais perante a ameaça de lealdades aferidas por valores diferentes.

3 — O Estado racional-normativo ocidental pareceu ter encontrado solução para este problema nos domínios do legislativo e do judicial. O princípio da estrita legalidade, a publicidade das leis e todos os axiomas que rodearam o processo legislativo não imaginou que as leis secretas pudessem voltar a ser um instrumento de governo despótico, como aconteceu com o nacional-socialismo alemão. Assim como processo contraditório e público, a definição clara e observada do segredo judicial excluíram a questão do âmbito do judiciário, sem terem evitado que regimes, como o soviético, reintroduzissem o processo inquisitório, administrativo e secreto. Ainda, noutros casos, voltaram ao princípio do Estado absolto das leis positivas ou da ética que o transcende, e a questão do segredo de Estado perde-se na catástrofe do Estado de direito.

Para este, que é o intxlelo ocidental, a questão, resolvida nos domínios do legislativo e do judicial, manteve-se sempre viva naquilo que respeita ao Executivo. Com ou sem agudeza, visto o fenómeno das lealdades múltiplas, em épocas sempre equivocadamente qualificadas de normalidade, ou para enfrentar as crises, pode o Executivo desempenhar-se das suas responsabilidades sem um regime definido de segredo de Eslado?

Sobretudo, as exigências do Estado democrático, representativo ou plebiscitario, ptxlem ser compatíveis com essa restrição ao saber da parte dos todos que devem intervir na governação e para os quais a governação existe?

Podemos partir destas palavras do venerado Alexandre Hamilton, nos documentos federais: «Energia no executivo é a característica principal de um bom governo.» Mas em que medida está essa energia, que aqui significa mais seguramente eficácia dependente do segredo de Eslado num governo do povo, pelo povo e para o povo? E em que medida tal regime, se necessário, deixa em pleno vigor o sentido destas palavras do senador Sam Ervin, nos dias não muitt) afastados do famoso Watergate: «Uma das grandes vantagens de possuir três corpos separados de governo é que é difícil corromper os três ao mesmo tempo?» A clandestinidade do Estado e a violação da