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II SÉRIE-A — NÚMERO 50
didas ou providências para resolução de certos problemas», são mesmo uma exigência do Estado social contemporâneo, e não apenas não são proibidas como são «impostas pela realidade constitucional» (cf. Jorge Miranda, «Sentido e conteúdo da lei como acto da função legislativa», irt Nos Dez Anos da Constituição, Lisboa, 1986, p. 179; v. também Marcelo Rebelo de Sousa, ob. cif. e loc.-cit.).
Não é pelo facto de a lei se destinar a aplicar numa determinada situação concreta, visando produzir efeitos específicos, que ela deixa de relevar dos domínios das funções política e legislativa para interferir na esfera de actuação reservada aos órgãos da Administração Pública, ao arrepio do princípio da separação e interdependência de poderes estabelecido no artigo 114.° da Constituição;
Conforme escreveu Nuno Piçarra, «o princípio da separação e interdependência não exige uma diferenciação funcional que impeça os actos legislativos de terem conteúdo individual e concreto, a não ser no caso de se tratar de actos legislativos restritivos de direitos, liberdades e garantias, de acordo com o artigo 18.°, n.° 3, ou a não ser no caso de se tratar de actos legislativos que se limitem a conter um concreto acto de execução ou aplicação de regra preexistente» (cf. «A separação dos poderes na Constituição de 1976 — Alguns aspectos», in Nos Dez Anos da Constituição, Lisboa, 1986, pp. 166-167).
Neste caso, não se trata de normas restritivas de direitos, liberdades e garantias mas antes de normas que concedem vantagens ou benefícios aos seus destinatários. E também não se trata de meros actos de execução de outros comandos normativos, já que quaisquer providências concretas que a proposta de lei possa conter surgem sem prévia mediação normativa, satisfazendo por si mesma os fins sociais visados com a sua aprovação.
5 — Não se tratando de normas restritivas de direitos, liberdades e garantias, também não se vê como elas possam violar os princípios da autonomia da vontade e da liberdade de associação estabelecidos no artigo 46." da Constituição da República Portuguesa, e muito menos ainda o princípio da proporcionalidade estabelecido no artigo 18.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa.
No primeiro caso, porque a delimitação dos clubes de futebol como categoria autónoma de sujeitos de direito não transforma nenhuma associação com fins desportivos em clubes de futebol contra a sua própria vontade. A vontade manifestada nos estatutos através da definição dos fins associativos será sempre respeitada, e até poderá servir de critério de integração do conceito vago e indeterminado «clubes de futebol» (não parece plausível, em qualquer caso, que estejamos perante prestações que se transformam em medidas «agressivas», pois o conjunto de vantagens concedidas pela proposta de lei em análise não é susceptível de comprimir a esfera de liberdade dos clubes de futebol ou dos seus associados).
No segundo caso, porque o preceito constitucional cuja violação se alega, pela sua própria inserção sistemática, no âmbito do regime material dos direitos, liberdades e garantias, só teria efectiva aplicação na hipótese de estarmos perante normas restritivas daqueles direitos, e não estamos.
6 — Também não procedem os argumentos invocados para fundamentar uma suposta inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13." da Constituição.
O disposto no n.° 2 daquele artigo não proíbe a previsão legal de discriminações positivas sempre que elas se justifiquem pela especificidade da situação dos seus destinatários, de acordo com o princípio geral de que se deve tratar de
forma igual aquilo que é igual e de forma desigual aquilo que é desigual (sobre o princípio da igualdade v., por todos, João Martins Claro, «O princípio da igualdade», in Nos Dez Anos da Constituição, Lisboa, 1986, pp. 29 e segs.).
Tratando-se de uma lei dirigida a uma categoria específica de sujeitos, ela não pode deixar de contemplar discriminações positivas, pois, como salienta Marcelo Rebelo de Sousa, a propósito das leis medida, «só se pode combater desigualdades com desigualdades correctoras para prosseguir a igualdade e isso implica naturalmente discriminações entre categorias de cidadãos» (cf. ob. cit. e loc. cit.).
Aliás, ainda que se entenda não haver aqui razões que justifiquem um tratamento diferenciado dos clubes de futebol relativamente a outros sujeitos de direitos — contribuintes em geral e porventura as empresas em particular (questão que naturalmente só se colocaria relativamente às normas que estabelecem o regime de pagamento das dívidas referentes a impostos e contribuições para a segurança sociaJ e nunca a propósito do regime de distribuição das receitas do Totobola, pois os clubes são os únicos contribuintes que concorrem directamente para a criação dessas receitas; trata-se, no entanto, de uma questão que não é passível de resposta sem tecer considerações sobre o mérito dás motivações políticas subjacentes à proposta de lei n.° 40/VJT, matéria de que deliberadamente nos afastamos nesta sede) —, sempre se dirá que daí também não resulta necessariamente uma violação por acção do princípio da igualdade.
Em tal hipótese, «a desigualdade deve ser adjudicada a favor da extensão dos direitos ou vantagens aos que delas foram excluídos» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 3.° ed., Coimbra, 1993, p. 129), querendo com isto dizer-se que a inconstitucionalidade não estaria na concessão dos benefícios aos clubes de futebol mas na sua não concessão a outros sujeitos de direito que, satisfazendo uma função social idêntica ou semelhante àquela que se reconhece aos primeiros, deles também devessem beneficiar.
Este tem sido, aliás, o entendimento constante do Tribunal Constitucional, expresso através dos Acórdãos n.°* 423/ 87 e 449/87, relativos, respectivamente, ao ensino de religião e moral católicas nas escolas públicas e à atribuição e determinação de montantes de pensões de reforma.
7 — Chegados a este ponto da análise, forçoso é reconhecer que a proposta de lei n.° 40/Vü não merece censura no que respeita aos vícios de inconstitucionalidade alegados no presente recurso, independentemente da apreciação do respectivo mérito que pode e deve ser feita pelo Plenário.
Por outro lado, mesmo que algumas dúvidas ainda subsistissem, sempre se deveria optar por uma interpretação mais favorável ao exercício do direito de iniciativa legislativa constitucionalmente assegurado ao Governo [cfr. artigos 170.°, n.° 1, e 200.°, n.° 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa], permitindo a apreciação e a discussão na generalidade da proposta de lei n.0-4Q/VTi.
Assim, propõe-se que seja adoptado o seguinte
Parecer
Não se verificam as inconstitucionalidades apontadas à proposta de lei n." 40/VTJ, devendo o recurso do respetivo despacho de admissão ser rejeitado.
Para tanto, deve o mesmo recurso subir a Plenário para que se proceda à sua apreciação e votação.
Palácio de São Bento, 19 de Junho de 1996. — O Depu-. tado Relator, Cláudio Monteiro. — O Deputado Presidente, Alberto Martins.