O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

II SÉRIE-A — NÚMERO 180

18

da vítima. Dito de outro modo: tenha natureza pública ou semipública, o crime de violação deverá sempre incluir

uma “válvula de escape” sensível ao interesse concreto da vítima». Não obstante, no parecer da APAV parece

manifestar-se a preferência por uma solução pública mitigada, justificada sobretudo pelo número escasso de

casos em que o Ministério Público instaurou oficiosamente o processo, nos termos da possibilidade já prevista

como válvula de segurança para a opção pela natureza semipública.

PARTE II – Opinião da relatora

A relatora do presente parecer reitera a opinião vertida em pareceres anteriores relacionados com iniciativas

com propósitos semelhantes, discordando da opção de atribuir natureza pública a estes crimes.

No que respeita à outorga de natureza pública, ainda que pretensamente mitigada, julga-se conveniente uma

curta revisitação da reflexão já vertida na monografia: O Direito processual penal português em mudança:

rupturas e continuidades1.

O princípio da oficialidade vale de modo pleno relativamente aos crimes públicos, mas conhece as limitações

decorrentes da consagração generosa da necessidade de queixa do ofendido para a instauração do

procedimento criminal e, com menor frequência, da exigência de acusação particular para a sujeição do caso a

julgamento2.

Tais desvios à oficialidade têm sido explicados fazendo apelo a vários critérios, nomeadamente a menor

gravidade de certos ilícitos, a qual tornaria desnecessária a intervenção punitiva estadual se o ofendido a não

reclamar, supondo-se ainda que o reduzido desvalor da conduta não causa significativo abalo comunitário. Mas,

por outro lado e mesmo em crimes mais graves, a exigência de queixa configura-se ainda como um

reconhecimento da autonomia da vontade do ofendido em não ver expostas no processo penal questões que,

por serem eminentemente atinentes à sua intimidade ou à sua privacidade, poderiam com a sua revisitação num

processo penal indesejado levar a uma intensificação ou a uma revisitação da ofensa. Ou seja, os crimes

particulares em sentido amplo não são, necessariamente, apenas os crimes menos graves. Haverá casos em

que se poderá entender que, apesar da manifesta gravidade do crime, a existência do processo criminal deverá

depender da queixa do ofendido, mormente porque um processo indesejado lhe causará uma desproporcionada

vitimização secundária e porque o seu interesse na modelação da resposta ao crime é preponderante face ao

interesse comunitário na punição.

A opção sobre a natureza processual de vários crimes voltou a ser objeto de controvérsia político-criminal a

propósito de crimes como a coação sexual e violação, relativamente aos quais se vem assistindo a uma

tendência para o fortalecimento da componente pública ainda que, paradoxalmente, com o argumento da

necessidade de proteção da vítima concreta.

Quanto aos crimes de coação sexual e de violação passou-se, desde 2015, a dispor, no n.º 2 do artigo 178.º

do Código Penal que «quando o procedimento pelos crimes previstos nos artigos 163.º e 164.º depender de

queixa, o Ministério Público pode dar início ao mesmo, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver

tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe»3.

De forma propositadamente simplificada, pode afirmar-se que um crime deve ser público quando o interesse

comunitário na persecução penal se sobrepuser ao interesse do concreto ofendido na existência ou não de um

processo penal e que, pelo contrário, um crime deverá ser particular em sentido amplo sempre que se dever

outorgar preponderância à vontade do ofendido quanto à existência do processo penal, secundarizando o

interesse comunitário. Sob este enfoque, parece paradoxal que, para proteção dos interesses das vítimas

adultas de crimes de coação sexual e de violação, se outorgue ao crime uma natureza pública.Pior: acredita-

1 Cfr. SANTOS, Cláudia Cruz — O Direito processual penal português em mudança: rupturas e continuidades. Coimbra :Almedina, 2020, sobretudo p. 103 ss. 2 Na opinião de José de Faria Costa, a existência de crimes particulares em sentido estrito é: «um dos afloramentos mais expressivos e sintomáticos do horizonte do consenso» (ideia que pode ser, pelo menos até certo ponto, aplicável aos crimes semipúblicos). Todavia, julga-se que, diversamente do que sucede com a suspensão provisória do processo ou com o processo sumaríssimo, esse consenso ocorre de certo modo «à margem» do processo penal. A especificidade desse consenso inerente aos crimes particulares é vista pelo autor também como «um reforço da componente vitimológica na apreciação e realização da justiça» – é reconhecido por José de Faria Costa — Comentário conimbricense do Código Penal: tomo II, Jorge de Figueiredo Dias — Comentário do artigo 207.º do CP, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 124). 3 Esta redação foi introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto.