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II SÉRIE-C — NÚMERO 20

acontecer, quando se tem fortuna, é ser-se possuído pela própria fortuna e perder-se uma grandíssima parte da Uberdade —, o que faria em primeiro lugar seria ir a uma aldeia (e eu próprio cresci numa aldeia e sei bem como é que é aquela vida), reunir os moradores, os habitantes, e expor-lhes a seguinte questão: para que esta aldeia possa viver com melhor economia, e supondo que essa economia depende da terra, o que é que vocês proporiam?

Vou referir-vos um caso concreto: numa aldeia que conheço, um grupo de mulheres, bastante grande, está interessado em fazer a cultura do linho. Fizeram experiências que me deram ideia de como ainda permanece no íntimo do povo o tal espírito de economia de convivência, de economia comunitária, de economia de solidariedade. Cada uma dispôs um pouquinho da sua terra, que habitualmente dá feijão ou batata, para cultivar linho. Mas houve uma, com mais imaginação, mais audácia — ou maior imprudência, se quiserem —, que pôs toda a sua terra à disposição dessa experiência. Então as outras, aflitas com a possibilidade de ela não vir a ter que comer, foram criando um depósito de batata e feijão para, se por acaso a experiência não desse certo, ela ter com que se aviar para a vida e tornar a repetir a experiência, se quisesse.

Como elas acharam que deviam ter um campo muito maior para que a cultura do linho desse pleno resultado, eu chegaria e perguntar-lhes-ia qual a terra que elas desejavam e faria com que se comprasse essa terra, sempre com o maior respeito e a maior obediência às leis vigentes, de modo que tudo se pudesse fazer sem violência.

Lembro-me, por exemplo, de outro caso que envolve uma analfabeta minha amiga. Devo dizer que tenho muitos amigos analfabetos e que, por isso, quando me convidam para lutar contra o analfabetismo, fico sempre muito atrapalhado, porque sinto que se vai perder uma grande força cultural em Portugal e que se pode vir a criar uma classe mais poderosa, daqueles que, sabendo ler, não entendem o que lêem. Além de tudo, a noção de analfabetismo tem de ir muito mais longe: não é apenas analfabeto o que não sabe juntar as letras para lê-las, é-o também aquele que, tendo lido no jornal, ouvido na rádio ou visto na televisão alguma ideia sobre química, física, zoologia, política ou economia, não sabe o que isso significa. Ele deveria ter possibilidade de imediatamente se dirigir a algum lugar para se esclarecer, para acabar com aquela espécie de analfabetismo em que está mergulhado quanto a tal ou tal assunto.

Mas, voltando à propriedade económica, eu poria exactamente esse problema: que me dissessem qual a terra que era preciso comprar e, tanto quanto possível, eu negociaria com o proprietário para que essa terra fosse adquirida, vendo ainda se ela realmente era própria para a cultura do linho, para o que teria de chamar toda a gente que percebe de culturas, toda a gente de agronomia, toda a gente dedicada a esses estudos, para dizerem, a cada momento, se a tal terra em Portugal convinha para tal ou tal cultura.

Em segundo lugar, tinha de chamar um jurista, porque de leis eu não percebo nada. Apesar do latim, fiquei sempre desconfiado de que o romano era muito menos inteligente do que parecia, que servia para fazer pontes, mas que nunca entendeu direito a filosofia

grega — e daí fez o código penal — ou nunca entendeu direito a noção de beleza que o grego tirava da geometria, que apenas lhe serviu para construir pontes. .., e muito atrapalhado ficou quando chegou ao mar e não havia ponte que o pudesse atravessar!... Até que o Português inventou o navio, que é a ponte e a estrada por onde eles caminharam sobre o mar, e daí se espalhou tudo isso, toda essa herança antiga.

Então eu perguntaria ao jurista qual era a fórmula para que essa terra pudesse ser cultivada, pudesse ser tratada na tal economia de convivência, na tal economia comunitária, que é fundamental em Portugal, como o foi em Espanha.

Não nos esqueçamos de que, quando Carlos V, que acho que foi um dos primeiros a querer fundar a CEE,

Risos.

... tomou conta do trono de Espanha, mas com uns «manos» alemães que repugnaram ao povo espanhol, o povo espanhol levantou-se para lutar contra ele, teve a coragem de se erguer contra aquele homem que era grande na arte militar e que possuía excelentes guerreiros, e o nome que tomaram foi o de comuneros. O que eles queriam defender contra Carlos V era que se continuasse com esse costume da comunidade em Espanha, Com sus fueros v costumbres, como diziam, e as mulheres — D. Maria de Toledo, por exemplo, a par de outras — tiveram nisso uma parte importante.

Foram batidos por Carlos V, como não podia deixar de ser, mas, curiosamente, em Valência, aparece, como esperança fundamental de que um dia Carlos V seria vencido, por muito que demorasse a vingança, a figura do Encoberto, que veio caminhando no sentido oeste, bateu à porta do Bandarra e alertou todos os Portugueses, que também já estavam enjoados com tanta Europa que ia invadindo o País e que procuravam defender-se o mais possível, como, por exemplo, o Sá de Miranda e outros... e até Camões.

Quando Camões fala da «austera, apagada e vil tristeza», o que é isso? É a invasão da Europa, é a economia capitalista que bate a economia comunitária, é o governo autoritário que bate o governo de coordenação, é a metafísica do previsível que bate a metafísica do imprevisível e é alguma coisa de mais terrível, é a educação pelo livro, que bate a educação pela experiência, a educação de viver plenamente a vida que se oferece a todos nós.

Então, esse Encoberto, curiosamente, só vai ter uma identidade, só vai ter um nome com a batalha de Alcácer-Quibir e eu a mim próprio ponho o problema de saber se ele tem essa identidade, isto é, se o Encoberto passa a chamar-se D. Sebastião por causa da derrota, ou seja, por aparecer aquele rei que, depois de uns reis meio melancólicos, meio sinistros e meio atra-palhantes que tinha havido em Portugal, era louco de aventura, atacando o urso na serra de Sintra ou metendo-se ao mar quando havia tempestade, louco decerto, tão louco que foi atravessar o deserto de África em Agosto, quando podia perfeitamente ter navegado quase até ao campo de batalha, ou se, como que inconscientemente, como que sentindo por dentro alguma coisa diferente (o que, às vezes, não sentem os historiadores! ...), o povo português deu ao Encoberto o nome de D. Sebastião porque viu o que havia de positivo na batalha de Alcácer-Quibir. Viu como as armas