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II SÉR1E-C — NÚMERO 23
Fica o provedor de Justiça habilitado a admitir, neste ponto fulcral, a concordancia de V. Ex.*, o que não deixará de ter consequências ao nível da aplicação do regime da responsabilidade civil, extra-contratual do Estado, designadamente para o efeito de a responsabilidade poder ser apurada nos termos dos artigos 2.°, n.° 1, e 6.° do Decreto-Lei n.°48 051, de 21 de Novembro de 1967.
4 — Das limitações impostas aos aderentes à convenção de arbitragem. — O processo alternativo de resolução do litígio, através da constituição de um tribunal arbitral, não é, por si só, objecto de crítica ou reparo na recomendação do provedor de Justiça, excepto no que tardou.
O que não pode deixar de censurar-se é ver em tal meio o resultado de uma «solução de consenso a que os hemofílicos aderiram». É certo haver hemofílicos lesados ou seus herdeiros que aderiram à convenção de arbitragem. Mas é igualmente certo que os não hemofílicos vitimados ou seus herdeiros não aderiram por não terem sido, sem qualquer fundamento, admitidos ao processo alternativo arbitral. Mas o certo é também que aos aderentes foram impostas cláusulas injustificadas irrenunciáveis, sob pena de ficar comprometida a adesão. Impostas, insofridamente, pela parte mais forte, a qual iria ser ré. Este condicionamento é acrescidamente censurável pelo facto de essa parte ser o Estado, vinculado como está a princípios de solidariedade e respeito pela dignidade humana e cujo cumprimento deveria poder ser paradigmático. Não posso escusar-me a reproduzir, a este propósito, as palavras de Pierre Guibentif, quando escreveu que «a observação da produção do direito também mostra que, não raras vezes, esta dá lugar a processos de aprendizagem colectiva, nos quais certos intervenientes se revelam a si . próprios e à restante sociedade» (in Legislação — Cadernos de Ciência de Legislação, INA, n.° 7, 1993).
De nada adianta, assim, a invocação do disposto no artigo 1.°, n.° 4, da Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto, pois, nos seus exactos termos, o acto legislativo exigido cinge-se à autorização para celebrar convenção de arbitragem e nada mais impõe. O abuso da função e do poder legislativo está na iniquidade das limitações introduzidas, apontadas pela recomendação e não no simples recurso à via legislativa. Se em indevido sentido foram compreendidas as asserções que a esse propósito formulei —o que me abstenho de presumir—, fica prestado esclarecimento adicional.
5 — Caracterização da comissão de indemnizações proposta; sua intervenção. — Quanto à comissão permanente de indemnização e que é proposta na recomendação, admitindo que por hipótese fosse a única alternativa aos tribunais comuns e fizesse precludir a via concretizada pelo tribunal arbitral, conceda-se que seria discutível — como tudo, de resto — quanto à sua favorabilidade, celeridade e eficácia. O que não poderia afirmar-se era constituir uma solução ímpar nos países da Europa Ocidental, porquanto veio a ser adoptada, designadamente em França (Lei n.° 91-1406, de 31 de Dezembro de 1991), e já não estamos em tempo de, como Pascal, considerar que verdades para lá dos Pirinéus constituem erros para aquém deles. Sublinho, além do mais, que as vias propostas pela recomendação não constituem uma simples importação do sistema francês, desde logo porque em parte alguma é sustentada a e.tót\qão do tribunal arbitral.
Ora, não é possível admitir, nem tão-pouco compreender como possa ser «menos favorável à resolução célere e eficaz do litígio» um meio complementar e paralelo à via arbitral para os que a ela tiveram acesso e como alternativa única aos excluídos pelo Decreto-Lei n.° 237/93, de
3 de Julho, ou seja, os hemofílicos contaminados por produtos de origem nacional e todos os não hemofílicos aos quais haja sido transfundido sangue contaminado ou produtos seus derivados, bem como todas as pessoas que foram infectadas através dos lesados por via da prestação de cuidados de saúde ou por consequência de factores inerentes às relações familiares.
Por outro lado, a discordância manifestada quanto a este aspecto pela APH não pode ser colhida, decididamente, como argumento de auctoritas. Valha a verdade e no texto da Associação ao qual teve V. Ex." acesso, as perplexidades exibidas mais não são que o resultado de uma infeliz compreensão da motivação de direito, à qual o provedor de Justiça é alheio, como o será, certamente, também a própria APH. De resto, sempre caberá o juízo final, nesta matéria, não aos portadores de interesses associativos, mas aos lesados —hemofílicos e não hemofílicos, sócios ou não sócios da APH — e, muito particularmente, a V. Ex.", ilustre destinatário da recomendação formulada.
6 — Ininvocabilidade da reserva de competência parlamentar, por forma a justificar a ausência de medidas a tomar, no domínio fiscal. — Responde V. Ex." às recomendadas isenções fiscais, absolvendo-se da instância, por se tratar de matéria contida na reserva de competência parlamentar. Não ignorará, porém, V. Ex.° nem os poderes de iniciativa legislativa do Governo junto da Assembleia da República (artigo 170.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa), nem por certo, acrescidamente, o exclusivo dessa iniciativa por parte do Governo sempre que esteja em causa a diminuição de receitas do Estado, no ano económico em curso (artigo 170.°, n.° 3, idem).
Furtar-se o Governo a exercer tal iniciativa, não poderá ser compreendido à luz de fundamentos orgânico-for-mais de natureza constitucional, como bem vê V. Ex." Os motivos a invocar terão necessariamente que ser outros, sob pena de ineptidão manifesta.
7 — Ininvocabilidade dos princípios constitucionais da igualdade e justiça social para justificar validamente a não concessão dos benefícios sociais recomendados. — Por fim, no tocante à legítima e louvável preocupação do Governo com outros cidadãos vítimas de doenças crónicas e incapacitantes, incuráveis à luz dos conhecimentos actuais, devo lembrar a V. Ex* que a igualdade e justiça social não se conquistam pelo mínimo de benefícios a conferir a uns para não discriminar outros. Ao invés, as preocupações igualitárias e de justiça social, tal como a Constituição as reconhece, antes impõem o enriquecimento do estatuto de ambos.
Assim, em caso algum será de interpretar restritivamente o texto da recomendação formulada, observando-se no mesmo, ao contrário, um verdadeiro estímulo para uma protecção mais justa e solidária de todos os cidadãos atingidos por doença incapacitante, crónica e incurável.
8 — Conclusão. — Em conclusão, reitero junto de V. Ex." a necessidade de adopção das medidas que foram objecto da recomendação de 27 de Dezembro próximo passado, pedindo-lhe que informe este órgão do Estado sobre a posição assumida face aos argumentos ora aduzidos, bem como sobre as medidas previstas ou a prever que contemplem os restantes lesados por actos de administração de sangue ou produtos seus derivados e que ficaram excluídos pelo Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho. Para esse efeito, permito-me fixar o prazo máximo de 15 dias, nos termos do disposto no artigo 29.°, n.° 4, da Lei n.° 9/91, de 9 de Abril.
O Provedor de Justiça, José Menéres Pimentel.