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II SÉRIE-C — NÚMERO 4

existência de um «núcleo essencial» de funções de cada órgão de soberania (Canotilho/Moreira), em relação às quais é vedada a intromissão ou o esvaziamento por qualquer outro órgão de soberania, seja através da actividade interpretativa do conjunto das respectivas funções, seja através de um acto legislativo, que será, assim, inconstitucional. Por outro, a própria Constituição impõe a colaboração entre vários órgãos na prossecução de uma mesma função, seja no exemplo típico da função legislativa, seja na própria formação do indirizzo político.

A nossa jurisprudência constitucional tem desde sempre defendido que para protecção do núcleo essencial de funções de cada órgão de soberania deve ser tido por contrário à Constituição qualquer assunção por parte de um. desses órgãos de competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente órgão (parecer n.° 16/79 da Comissão Constitucional), bem como funções para que não está vocacionado, no que respeita à sua estrutura, legitimação, procedimento e responsabilidade (Acórdão n."25/84 do Tribunal Constitucional). Daqui resulta a dupla dimensão a que nos referimos, que Nuno Piçarra qualifica como negativa (pouvoir d'empêcher) e positiva (pouvoir de statuer).

5 — A Constituição contém o núcleo essencial da função jurisdicional nos actuais artigos 202.°, 203.° e 216.° Deles se depreende uma vertente material (artigo 202.°, n.°* 1 c 2) e uma vertente orgânica (artigos 203.° e 216.°). Cabe, assim, em exclusivo aos tribunais, com independência e imparcialidade, a resolução de conflitos de interesses relativos a casos concretos com base em critérios constantes de normas jurídicas preexistentes, tendo por fim específico a realização do direito e da justiça (Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 71/84, entre inúmeros outros).

Para o exame específico do caso que nos ocupa — apreciação da legalidade de actos da Administração — o artigo 212.°, n.° 3, atribui aos tribunais administrativos a competência para dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.

6 — À Assembleia da República comete a Constituição uma plêiade de funções já não apenas recondutíveis à clássica função legislativa. Nos artigos 161.° e seguintes vemos as funções política, legislativa, de controlo e fiscalização, bem como variadas funções de acompanhamento explicitadas no artigo 163.° (Canotilho).

No exercício da função de fiscalização cabe, desde logo, à Assembleia da República vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração. Para o efeito, podem ser constituídas comissões eventuais de inquérito (artigo 178°, n.° 1) cujo objecto se deve encontrar limitado pelas próprias competências da Assembleia da República, designadamente as de fiscalização, bem como pelo núcleo essencial das funções constitucionalmente atribuídas aos outros órgãos de soberania.

Deve, no entanto, ter-se em atenção, como refere Nuno Piçarra, que «a Constituição na sua globalidade indica inequivocamente que os órgãos de soberania nela enumerados, assim como as diversas funções entre eles repartidas, estão equiordenados perante ela e, portanto, em estrita paridade entre si». Ou seja, para a Constituição goza de igual valor a função jurisdicional entregue aos tribunais como a função de fiscalização entregue à Assembleia da República. Ambas, na sua vertente, gozam da mais alta protecção da Constituição, constituindo limite material de revisão, ao concretizarem o princípio da separação e

interdependência de poderes querido pela Constituição [artigo 288.°, alínea j)].

E é a própria Constituição que atribui .às comissões de inquérito os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (artigo 178.°, n.°5), limitados necessariamente pela defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, na parte em que, para determinados actos de investigação, se exige a intervenção de magistrado judicial — essencialmente em processo penal, artigos 32." e 34°

As comissões parlamentares de inquérito, órgãos da Assembléia da República para o desempenho da função constitucional de fiscalização, não assumem nenhuma das características que vimos serem próprias dos tribunais. A apreciação dos actos do Governo e da Administração tem em vista uma eventual responsabilização política (parecer n.° 14/77 da Comissão Constitucional) ou a tomada de medidas políticas ou legislativas. A defesa da Constituição e das leis é assumida como corolário da supremacia legislativa da Assembleia da República e da detenção exclusiva de poder constituinte, se bem que, distintamente do que sucedia ao abrigo da Constituição de 1933, não cabe à Assembleia da República declarar as inconstitucionalidades, mas apenas controlar politicamente a concretização da Constituição (Canotilho/Moreira).

7 — Ou seja, as comissões de inquérito não são tribunais, não exercem a função jurisdicional, nem têm por finalidade julgar a validade dos actos da Administração com força de verdade legal (Nuno Piçarra). Nas palavras esclarecidas do procurador-geral-adjunto junto do Tribunal Constitucional (no processo Camarate), «não visam, na rea-" lidade, as comissões dirimir litígios ou reprimir violações de legalidade por parte de sujeitos determinados, mas avaliar globalmente situações, em face de parâmetros de natureza essencialmente política, com vista a habilitar o órgão máximo de representação democrática a adoptar as medidas adequadas, no âmbito da sua competência política ou legislativa».

8 — Face à clara diferença de natureza entre a apreciação parlamentar da constitucionalidade e da legalidade de actos do Governo e da Administração e o julgamento desses actos pelos tribunais, em nada obstaria o «inquérito paralelo». Razão pela qual, no seguimento da querela no caso Camarate, o PSD, o PCP e o PP apresentaram já projectos de eliminação do entrave ao «inquérito paralelo», constante do n.°2 do artigo 5.° da Lei n.°4/93, projectos aprovados na generalidade no Plenário da Assembleia da República e em fase final de apreciação na especialidade na 1.° Comissão (projectos de lei n.0524/VIT e 245/VI1 e propostas de alteração ao projecto de lei n.° 16/VH). Esse entrave legal, não constitucional, refere-se ao processo criminal, dele decorrendo a suspensão do inquérito parlamentar no período entre o despacho de pronúncia transitado em julgado e a sentença, igualmente transivaà-a em julgado.

As alterações propostas atribuem à própria Assembleia a faculdade de deliberar a suspensão dos seus trabalhos, não já decorrendo da lei automaticamente essa suspensão. Faculdade que sempre se deveria ter por assumida pela Comissão face a uma ponderação de bens e valores jurídicos que levem a considerar a existência de risco para processos penais pendentes (Nuno Piçarra). Obviamente situação não transferível para outros processos judiciais onde os direitos fundamentais não se possam encontrar em perigo, como na apreciação da legalidade objectiva de actos do Governo e da Administração.