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17 DE OUTUBRO DE 1992 149

nuais é a referência ao réaménagement des pouvoirs souverains, o reordenamento, que é aquilo que defendo; não encontramos nenhuma expressão equivalente a partage ou coexercice des pouvoirs souverains. Portanto, julgo que, aqui, embora se perceba o que se quer dizer, a Constituição devia primar por um maior rigor.

A Constituição tem de assumir, como julgo ser pacífico na doutrina do direito comunitário, que há aqui delegação ou transferência de poderes soberanos. Os Estados poderão aceitar ou não essa delegação ou transferência, mas, se pretenderem recusá-la, não podem optar pelo exercício em comum ou pela compartilha, que não sei o que seja, embora esteja certo de que os Srs. Deputados mo irão explicar e que eu irei aprender hoje uma coisa importante e nova.

Também devo dizer que não vejo aqui qualquer vantagem em falar de reciprocidade. "Portugal pode, em condições de reciprocidade" - dizem os projectos. Reciprocidade com quem? Julgo que os Srs. Deputados estão a pensar nos outros Estados, mas mais uma vez a direcção está mal calculada. A questão põe-se entre Portugal e as Comunidades e não entre Portugal e os outros Estados.

E reciprocidade como? A reciprocidade surge no século XVII no direito internacional público como uma forma sinalagmática nos tratados bilaterais: do ut des. "Extradito os teus cidadãos se tu extraditas os meus", "dou asilo aos teus cidadãos se tu dás asilo aos meus" - são exemplos de sinalagma.

Quer dizer-se aqui que reciprocidade significa que vai exigir-se da Comunidade que exerça um poder cada vez que o Estado Português o exerce? Isso é negativo, porque vai prejudicar a subsidiaríedade, princípio referido logo a seguir nos projectos, porque ela é exactamente o contrário da reciprocidade, uma vez que é favorável aos Estados.

Segundo o artigo 3.°-B do Tratado da União Europeia, desde que os Estados sejam capazes de exercer de modo suficiente uma dada acção, a Comunidade só poderá exercê-la se provar que é capaz, pela dimensão e pelos efeitos dessa acção, de a exercer melhor. O que significa que há uma presunção da suficiência do Estado e é a Comunidade que tem de demonstrar que essa suficiência se não verifica e que, pelos efeitos ou pela dimensão da acção, ela é realizada de melhor forma ao nível comunitário.

Aliás, é assim que a subsidiariedade funciona no Estado federal de onde ela é importada, embora Maastricht não tenha nada de federal. O sistema constitucional da Lei Fundamental de Bona ergue a um dos seus princípios básicos o Subsidiaritatsprinzip, ou seja, o princípio da subsidiariedade, que, aliás, remonta à Antiguidade, por exemplo, a Aristóteles. Mais tarde, Dante, na sua obra clássica, De Monarchia, seria o primeiro teorizador da subsidiariedade; depois, os doutores da Igreja deram-lhe um conteúdo dogmático profundo; pouco depois, Victoria e Suárez tentaram introduzi-lo, sem êxito, no direito internacional. Mais modernamente, a doutrina social da Igreja aprofundou este princípio nas encíclicas Rerum Novarum, Quadragésimo Anno e, sobretudo, na Centesimus Annus, onde, pela primeira vez, se fala na subsidiariedade como "princípio" da filosofia social. Entre nós, um renomado sociólogo, o Prof. Sedas Nunes, ergue-o a princípio básico da filosofia social. Ele surge também como princípio fundamental do direito constitucional, do direito administrativo e, agora, do direito comunitário.

Portanto, exigir-se a reciprocidade na relação poder português/poder comunitário é desfavorecer o Estado Português, porque a subsidiariedade significa que pode acontecer que o Estado Português realize sucessivas acções sem a contrapartida de uma acção comunitária, já que o Estado Português ou os outros Estados são capazes de o fazer, segundo o artigo 3.°-B, de modo suficiente. Ou seja, é a descentralização que a subsidiariedade traz nas relações Comunidade/Estados, e que me levam a dizer que a subsidiariedade pode mesmo implicar que, pelo Tratado de Maastricht, e este é um exercício analítico que já foi feito nas Comunidades, determinados poderes que a Comunidade já exerce hoje regressem aos Estados. É possível que isso aconteça e esse fenómeno vai contra a ideia de reciprocidade.

Portanto, eu não faria referência neste artigo à reciprocidade. Na Constituição, a reciprocidade coloca-se no campo do direito internacional público, porque aí, sim, interessa que as relações interestaduais se desenvolvam e sejam reguladas na base da reciprocidade, mas entendo que nas relações Estado/Comunidades, havendo, ainda por cima, subsidiariedade, este princípio é pernicioso para os próprios Estados.

Os projectos de revisão constitucional nada dispõem sobre o artigo 8.° nem sobre o sistema de vigência do direito comunitário na ordem interna, questão ligada à anterior, embora não se confunda com ela. O artigo 7.° diz como é que o Tratado de Maastricht vai entrar na ordem interna, ou seja, o artigo 7.° está a ser alterado para permitir que o Tratado de Maastricht entre na ordem interna portuguesa. Mas há um problema complementar, que é o de saber se ele entra para vigorar e em que condições vai vigorar, problema que já se põe hoje quanto aos Tratados de Paris e de Roma e ao Acto Único Europeu.

Devo dizer que sou profundamente crítico quanto à redacção actual do artigo 8.° nesta matéria e que entendo que ele é extremamente infeliz.

Como sabem, o artigo 8.° regula a vigência do direito internacional na ordem interna. São quatro os vícios do artigo 8.° no modo como disciplina a vigência do direito comunitário na ordem interna.

Em primeiro lugar, no seu n.° 3 regula-se a vigência do Direito Comunitário derivado na ordem interna, dizendo-se que ele "vigora directamente na ordem interna", mas os tratados comunitários estão equiparados aos outros tratados internacionais - artigo 8.°, n.° 2 - nesta vigência. Acontece que isto, interpretado a letra, significa que em Portugal o tratado comunitário, equiparado ao tratado internacional clássico, designadamente, nem efeito directo tem, quando lá fora qualquer tratado internacional tem hoje efeito self executing, na terminologia norte americana e britânica. Ou seja, pode ser invocado por um particular em tribunal nacional, nalguns Estados até para afastar norma nacional incompatível.

Nos Estados membros das Comunidades ninguém põe em dúvida que isto aconteça; designadamente, em Portugal temo-nos pronunciado nesse sentido, em vários estudos, o Prof. Mota Campos e eu próprio.

Pois bem, tal não está consagrado no artigo 8.° quanto aos tratados comunitários. Pior: dá-se mais fácil vigência na ordem interna ao direito comunitário derivado (n.° 3 do artigo 8.° da Constituição) do que se dá à primeira fonte do direito comunitário, que são os tratados (n.° 2 do mesmo artigo). Isto não tem lógica, pois não faz sentido que a fonte básica do direito comunitário - os tratados comunitários - vigorem mais dificilmente na ordem interna do que a fonte secundária, que é o direito derivado.