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150 II SÉRIE - NÚMERO 9-RC

Segunda crítica ao artigo 8.°, mais concretamente ao n ° 3: o que lhe competia regular não era se as normas vigoram directamente na ordem interna, mas sim uma questão anterior a essa, que é a de saber se primam ou não sobre a Constituição e, designadamente, qual é o grau hierárquico do direito comunitário na ordem interna. Hierarquia essa que, como daqui a pouco vou mostrar, é definida por algumas constituições.

Mas, mesmo vigorando directamente o direito comunitário na ordem interna, este n.° 3 do artigo 8.° é imperfeito - e esta é a terceira crítica que tenho de lhe dirigir. Ele fala só em normas, e normas de direito derivado são só os regulamentos, talvez também as directivas, mas nunca as decisões, que são actos administrativos individuais e concretos, actos faisant grief, como os actos administrativos definitivos e executórios do sistema francês e também do direito administrativo português. Estes não estão previstos.

Todavia, posso garantir-vos que de então para cá já foram aplicadas em Portugal muitas decisões comunitárias ao arrepio do n.° 3 do artigo 8.°, porque não podia deixar de ser. No fundo estamos todos a consentir, de braços cruzados, num costume contra a Constituição. Assumamos, pois, que as decisões vigoram directamente, pela sua própria definição, e deixemos de falar no artigo 8.°, n.° 3, em "normas" para falar em "normas e actos".

Além do mais, quando as decisões e as directivas se dirigem aos Estados não se põe o problema de vigorarem directamente na ordem interna, uma vez que nesse caso não têm aplicabilidade directa, mas têm o tal efeito directo, de que já vos falei. Também por esta razão o n.° 3 do artigo 8.° é imperfeito.

Contudo, mesmo mantendo o artigo 8.°, n.° 3, existem alguns outros preceitos constitucionais que o contrariam. Julgo que não estou a exagerar quando digo que as normas emanadas dos órgãos comunitários que vigoram directamente na ordem interna abrem uma brecha na soberania dos Estados. Se assim é, como compatibilizar este artigo com o artigo 3.° da Constituição, que diz que a soberania é "indivisível"? Por alguma razão outros Estados, quando constitucionalizaram a adesão às Comunidades, tiraram da Constituição a expressão "soberania indivisível". "Una", sim, pois a palavra "una" não tem nada a ver com esta questão, significa que o Estado Português exerce soberania sobre todo o território português - e é bom que se continue a dizer isso -, mas "indivisível", não.

Por outro lado, também bole com o n.° 3 do artigo 8.°, mesmo na sua versão actual, o n.° 1 do artigo 277.°, quando diz que todas as normas, para vigorarem em Portugal, estão sujeitas à fiscalização da constitucional idade. Como assim, se o artigo 8.°, n.° 3, diz que umas vigoram directamente na ordem interna?

Qual é a minha proposta nesta matéria, quanto ao problema da vigência do direito comunitário na ordem interna? Se me permitem, penso que esta questão devia ser contemplada nesta revisão constitucional. Já é mau o sistema que vem de 1989, pois todos sabemos que ele não está a ser respeitado pelos tribunais nem pela Administração Pública, e se é mau para uma Constituição ela não estar a ser cumprida, pior ainda é saber-se que ela não está a ser cumprida e nada se fazer.

A alternativa é a da ruptura com o direito comunitário, o incumprimento constante do direito comunitário e, em consequência, processos da Comunidade contra Portugal ao abrigo dos artigos 169.° a 171.° do Tratado de Roma, e, portanto, permanente turbulência nas relações entre o Estado Português e as Comunidades. Pode-se ir por esta via, mas julgo que não é isso que se deseja. Portanto, esta era a altura de enfrentar a questão, até porque é uma questão que logicamente se vai seguir à da entrada do Tratado de Maastricht na ordem interna portuguesa, se este for ratificado: então a questão que se vai colocar é a de saber como é que ele, e os anteriores tratados comunitários enquanto continuarem em vigor, vão vigorar na ordem interna.

A minha proposta nesse sentido assenta nos seguintes pontos.

Em primeiro lugar, há que retirar do artigo 3.° a referência à soberania "indivisível". Porquê estarmos a enganar-nos uns aos outros com a expressão "soberania indivisível", quando a simples adesão às Comunidades, mesmo sem o Tratado de Maastricht, já tornou a nossa soberania divisível? Se estamos a delegar poderes soberanos nas Comunidades (mesmo só delegar e não transferir), porquê falar em soberania indivisível?

Segundo ponto da minha proposta: em relação ao artigo 3.°, onde se fala da soberania, introduzir ou uma cláusula geral da limitação da soberania estadual ou, diferentemente, uma autorização geral ao Estado Português para a delegação de poderes soberanos nas Comunidades, mediante acto do Parlamento. É o sistema utilizado pela Bélgica, pela Dinamarca, pela Grécia, pela Itália, pelo Luxemburgo, pelos Países Baixos e pela Alemanha.

Exemplo protótipo do primeiro sistema - cláusula geral de limitação da soberania estadual - é o grego. Dispõe o artigo 28.°, n.° 3, da Constituição grega:

A Grécia procede livremente, através de uma lei votada pela maioria do número total dos deputados, a limitações ao exercício da soberania nacional desde que tal seja imposto por um interesse nacional importante, sem atentar contra os direitos do homem e os fundamentos do regime democrático, e desde que tal seja feito na base do princípio da igualdade e sob a condição da reciprocidade.

Modelo do segundo sistema - autorização geral ao Estado para a delegação de poderes soberanos por acto do Parlamento - é o artigo 24.°, n.° 1, da Lei Fundamental de Bona, que diz:

A Federação pode transferir por lei [entenda-se: lei do Parlamento] poderes soberanos para organizações internacionais.

Está aqui presente a ideia de que o que se transfere são poderes soberanos, nunca a soberania - pelas razões que há pouco expliquei.

Ora bem, pela minha proposta, o n.° 3 do artigo 8.° nem era preciso. Podia-se ficar por aqui: uma cláusula geral ou uma autorização geral que legitimasse a limitação necessária. Está-se sempre a dizer que a adesão é livre e que é o Parlamento que decide nesta matéria.

Contudo, poder-se-ia ir, se se quisesse, mais longe, ou seja, para a questão do primado, como na Irlanda. O artigo 29.° da Constituição irlandesa regula o primado e diz o seguinte:

Nenhuma disposição da presente Constituição se pode opor a leis, actos ou medidas aprovados pelo Estado, necessários ao cumprimento das obrigações resultantes da adesão às Comunidades, ou pode impedir a vigência na ordem interna de leis, actos ou medidas aprovados pelas Comunidades ou pelos seus órgãos.