154 II SÉRIE - NÚMERO 9-RC
O segundo ponto que me parece importante mencionar é o seguinte: não parto do princípio que me pareceu enformar a exposição do Prof. Fausto Quadros - e ele tem toda a legitimidade para o fazer-, de enfocar este problema, basicamente numa relação dualista entre Portugal e as Comunidades. A relação é fundamentalmente tríade, isto é, desenvolve-se entre outros países que estão nas Comunidades e nós próprios, e, depois, só num segundo momento é que as Comunidades aparecem. Daí que - e, se a memória não me falha, o velho Von Trieppel tinha alguma razão quando estudava os problemas do mandato - a crítica que faz em matéria de soberania não me deixa convencido. Penso que é extremamente importante dizer que a soberania, a sua titularidade, os poderes soberanos, as faculdades que isso envolve, ou, seja como for, os poderes do Estado (não vamos agora estar a discutir isso em pormenor) permanecem nos Estados e que estes põem em comum o seu exercício, mediante os tratados e o direito que deles decorre. Essa não é uma figura virgem mas sim algo que está bem estudado, como sabe, nas doutrinas alemã e italiana a propósito dos problemas da cooperação. E, no fundo, o que se quer dizer é isto: não há uma transferência de soberania. Podemos discutir se isso é correcto, ou não, do ponto de vista último da dogmática, mas, sob o ângulo político, que é aquele que, neste momento, queremos considerar, a ideia é a de que nós não transferimos em definitivo a soberania, ela fica na titularidade dos Estados. Este é o primeiro aspecto, que é extremamente importante salientar.
O segundo aspecto que desejo sublinhar é este: a titularidade dos poderes soberanos permanece nos Estados e os Estados estão dispostos a cooperar e fazem-no acordando num tratado em exercer, por via delegada - mas é uma delegação comum -, um determinado número de faculdades. Esta é fundamentalmente a ideia que está por detrás da expressão compartilhar ou do convencionar o exercício de poderes - prefiro a fórmula usada pelo PSD, mas o problema, do ponto de vista do seu significado político, é igual.
Já agora, acrescentava o seguinte: como sabe, a fórmula da soberania una e indivisível tem uma tradição histórica que vem da época revolucionária francesa. No fundo, podemos perfeitamente interpretar essa soberania no sentido de a reconduzir apenas à competência da competência, e não de a considerar em todos os múltiplos aspectos em que se desenvolve. E, se o fizermos, nesta interpretação um pouco limitativa, digamos, livramo-nos das dificuldades que V. Exa. referiu. Se eu estivesse, como V. Exa., a escrever um manual, acompanhá-lo-ia em algumas das suas preocupações, mas, estando a fazer uma revisão da Constituição, penso que seria complicado enveredarmos pelo caminho sugerido, porque poderíamos transmitir uma mensagem diversa daquela que pretendemos, se quisermos tocar no problema da unidade e da indivisibilidade da soberania.
Assim sendo, nesse capítulo, diria que o nosso propósito é o de acentuar que há uma cooperação dos Estados sem perda da titularidade, uma cooperação em termos de exercício dos poderes, que se faz através de um título jurídico, que é o tratado. E daí o tratado e a Constituição numa instituição nova - aí posso atentar na sua ideia de Comunidade, seguindo a dicotomia de Tonnies, mas o fundo da questão é que nós não queremos consignar na Constituição uma alienação da soberania.
O problema da reciprocidade compreende-se a esta luz de uma maneira diferente, porque é evidente que significa igualdade das participações na tarefa comum. É por isso que o princípio da reciprocidade, nesse aspecto, a meu ver, ganha importância.
Quanto à questão da subsidianedade, a ideia foi esta: a subsidiariedade no projecto do Tratado de Maastricht tem um significado curioso, porque, no artigo 3.°, define-se quais são as competências exclusivas da Comunidade. Sabido como se tem feito aplicação da chamada teoria dos poderes implícitos, compreende-se não ser satisfatório limitarmo-nos a dizer que tudo o resto está submetido ao princípio da subsidiariedade. Ora, o que se pretendeu foi utilizar o princípio não no sentido do Tratado mas num sentido diverso. É ainda dentro da óptica de preservar ao máximo aquilo que é a competência dos Estados, portanto, uma óptica diversa da do primado das Comunidades, que se pretendeu dizer o seguinte: visto que a Comunidade, de qualquer modo, está mais distante dos indivíduos do que dos Estados e os Estados estão mais distantes do que as comunidades mais pequenas, como os municípios, vamos evitar ceder a esta tentação de resolver as coisas a um nível institucional superior - que já está de algum modo no Tratado de Maastricht, na medida em que as competências comunitárias exclusivas abrangem tantas coisas e é discutível que a competência ao nível comunitário tenha um título de legitimação superior ao dos Estados - e dar esta nota interpretativa que pretende conservar a competência da entidade mais próxima, através da consignação do princípio da subsidiariedade.
E aqui houve, nesta Comissão, uma discussão que reputo muito importante, porque precisamente se assinalou que esta subsidiariedade não tinha de ser interpretada nos mesmos termos em que está consignada no Tratado de Maastricht, embora a fonte ideológica e doutrinal seja a mesma.
Neste capítulo, foram estes os princípios que nos orientaram.
Devo dizer que quanto às suas considerações sobre o artigo 8.° acompanho-o no que se refere à ideia do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, mas permito-me ter algumas dúvidas sobre a interpretação da jurisprudência do Verfassungsgericht alemão, que é feita por vários autores e também por V. Exa., no sentido de salvar o primado comunitário. Em última análise, há, apenas, uma condescendência do Tribunal Constitucional alemão, na medida em que, pela aceitação pelo Tribunal das Comunidades dos direitos fundamentais e da Convenção dos Direitos do Homem, na prática, os conflitos são poucos, mas quer o Tribunal Constitucional alemão quer o italiano, apesar de tudo, não abriram completamente mão de serem eles os últimos juizes dessa coerência ou compatibilidade democrática. Tal significa uma afirmação de que a competência da competência na jurisdictio ainda é dos tribunais constitucionais dos Estados e não do Tribunal do Luxemburgo.
Mas, enfim, isso é problema mais teórico. Apreciei aquilo que disse, pois foi muito interessante. Em todo o caso, porque isso tem alguma conexão com aquilo que disse há pouco, gostaria de manifestar esta ressalva em relação à interpretação da jurisprudência que citou do Tribunal Federal alemão, apesar das oscilações registadas.
Por último, creio que a sua contribuição, na óptica da dogmática jurídica, é bastante valiosa, mas não posso deixar de sublinhar que, infeliz ou felizmente, quando estamos a rever a Constituição, há um aspecto político ao qual não podemos deixar de dar primazia.