O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

17 DE OUTUBRO DE 1992 151

Ou seja, regula o primado, e consagra o primado supraconstitucional do direito comunitário.

Desculpem-me - não é uma opção política mas uma opção exclusivamente científica -, sou partidário do princípio do primado supraconstitucional do direito comunitário, em sintonia com a doutrina dominante e com a jurisprudência comunitária e da grande maioria dos Estados-membros. E sou-o por várias razões.

Primeiro, o artigo 27.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados diz que nenhum Estado pode invocar qualquer disposição do seu direito interno - não distingue - para se furtar à execução de um tratado.

Em segundo lugar, a Comunidade Europeia foi criada como uma construção fiel à dicotomia de Tonnies na sociologia: comunidade versus sociedade. A Comunidade Europeia corresponde à concepção comunitária na classificação de Tonnies, contra a comunidade internacional, do direito internacional clássico, que é expressão da concepção societária. Enquanto no direito internacional clássico, justamente porque ele resulta de uma construção societária, os factores de desagregação são superiores aos factores de agregação, exactamente devido ao predomínio da soberania estadual sobre os interesses comuns aos Estados. Isso explica que seja co-natural ao direito internacional público o facto de ele ter nos 179 Estados membros das Nações Unidas 179 maneiras diferentes da sua aplicação na ordem interna, porque 179 filtros diferentes nas respectivas Constituições regulam a vigência do direito internacional na ordem interna de cada um. É um direito, por definição, fragmentário.

Ao contrário, o direito comunitário, porque dá corpo à concepção comunitária, que exprime a superioridade da agregação sobre a desagregação, tem como característica intrínseca, para ser comunitário ou comum, a uniformidade da sua interpretação e da sua aplicação na ordem interna dos Estados membros.

Portanto, para ele ser uniformente aplicado na ordem interna e para tratar os cidadãos comunitários em pé de igualdade tem, para começar, de ter vigência igual na ordem interna de todos os Estados, o que só se consegue se o seu primado for absoluto e incondicional sobre todo o direito nacional; ou seja, como diz um grande nome da doutrina do direito comunitário, o Prof. Pierre Pescatore, que durante muitos anos marcou, de modo determinante, a jurisprudência do Tribunal das Comunidades, o primado supraconstitucional é uma "exigência existencial" do direito comunitário. Sem primado sobre a Constituição não há direito comunitário e não há Comunidade. Estamos então a aderir a outra coisa qualquer, mas não às Comunidades Europeias.

A meu ver, esta querela perdeu sentido no campo doutrinário, porque entendo que o primado, tal como o concebo, está hoje consagrado no Tratado de Maastricht. O Protocolo n.° 17, anexo ao Tratado, diz que o Tratado de Maastricht não impedirá que se cumpra o artigo 40.°, n.° 3, § 3, da Constituição irlandesa, quando reconhece o direito fundamental do feto à vida. Tal só se compreeende se o Tratado de Maastricht aceitar o seu primado supraconstitucional, porque, se o Protocolo n.° 17 vem dizer que se ressalva na aplicação do Tratado um preceito da Constituição da Irlanda, quer com isso afirmar que sem ele o Tratado prevaleceria sobre a Constituição irlandesa.

Por outro lado, a Declaração n.° 19, também anexa ao Tratado, e que não vou ler porque é muito extensa, dispõe que os Estados se comprometem a aplicar total e integralmente o direito comunitário na ordem interna "com eficácia e rigor equivalentes aos empregues na aplicação do seu direito nacional". Ora, isso só se consegue com o primado do direito comunitário sobre todo o direito nacional, inclusive de grau constitucional.

Devo dizer que sobre esta questão já há três estudos no prelo, de eminentes autores, que subscrevem a interpretação de que o primado já não é, como era até agora, uma construção do tribunal, um pouco à margem do Tratado: agora ele está expressamente consagrado nesses dois textos anexos ao Tratado de Maastricht, mas que dele fazem parte integrante. Passou, pois, a ser lex scripta para as Comunidades e os Estados membros.

Há, contudo, uma excepção a esse princípio, que já foi sublinhada pelo Tribunal das Comunidades em alguns acórdãos na década de 70, e depois foi retomada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, nos casos "Solange I" e "Solange II", mas especialmente no primeiro, de 24 de Maio de 1974, e, em 1984, pelo Tribunal Constitucional Italiano, no caso "Granital": ou seja, esse primado supraconstitucional é travado por respeito pela "congruência democrática" do sistema. Por exemplo, e designadamente, o primado supraconstitucional fica paralisado se a supremacia de uma norma comunitária sobre a Constituição de um Estado levar à postergação de um direito fundamental reconhecido pela norma constitucional mas ignorado pelo direito comunitário.

Recordo o que diz a Constituição grega, que há pouco li: há primado supraconstitucional desde que dessa forma não se atente "contra os direitos do homem e os fundamentos do regime democrático".

Portanto, o primado supraconstitucional é travado porque a Comunidade, antes de ser Comunidade, é um sistema democrático. Isto é, se me permitem que me expresse assim, o primado da democracia é superior ao primado do direito comunitário.

Resumindo, pedindo-vos que me desculpem a ousadia perante tão ilustres constituintes, eu poderia apresentar propostas concretas sobre a redacção de alguns artigos da Constituição, de forma que eles acolhessem as ideias que defendi.

Assim, eu daria ao artigo 3.°, retirando a referência à soberania indivisível, uma redacção deste género:

O Estado Português consente em condições de reciprocidade com outros Estados nas limitações da soberania decorrentes da sua livre adesão a organizações internacionais.

Portanto, adoptaria o sistema grego para o artigo 3.º Ou então, poderia escolher o sistema alemão:

O Estado Português pode por acto do Parlamento delegar em organizações internacionais o exercício dos seus poderes soberanos em condições de reciprocidade com outros Estados.

Se se fosse para esse sistema, isso obrigaria a um ajustamento no artigo 167.°, ou seja, em matéria de reserva absoluta da competência legislativa do Parlamento.

Com isto, talvez nem sequer fosse necessário que o artigo 8.°, n.° 3, regulasse o primado, mas, já agora, era conveniente que o fizesse, como o faz, por exemplo a Irlanda. Nesse caso, o artigo 8.°, n.º 3, devo ia ter a seguinte redacção:

Os tratados institutivos das Comunidades Europeias, bem como as normas e os actos emanados dos