justamente aquele que regula de modo específico o funcionamento do TPI, seja admissível, ainda que a título excepcional, que essa previsão penal alguma vez possa ser aplicada, sem que da disposição da Convenção resulte uma desconformidade não admitida pela Constituição Portuguesa, uma vez que, como sabemos, entre o Direito Internacional e o direito interno existe não uma situação de confusão mas de inter-relacionamento entre esses dois níveis de ordens jurídicas. Ou seja, a constituição de um país também não pode ser indiferente ao modo como o Direito Internacional se projecta na sua ordem jurídica.
Em terceiro lugar, vale a pena ainda salientar um problema de reflexão relativo ao regime da extradição, na medida em que a nossa Constituição define regras bastante específicas quanto aos procedimentos jurisdicionais aplicáveis às situações permitidas para a extradição, que são as que constam do artigo 33.º da Constituição(em particular os n.os 1, 3 e 5). No entanto, na medida em que o Estatuto do TPI prevê a possibilidade de entrega de pessoas ao tribunal, pessoas essas que podem ser portugueses, faz sentido que nos interroguemos sobre se essa possibilidade de entrega, a pedido do tribunal, configura ou não uma solução de extradição.
Sabemos que a opinião jurídico-constitucional em torno da qualificação desta situação se divide, uma vez que eminentes constitucionalistas entendem que esta situação da entrega ao TPI, porque não resultaria de uma certa horizontalidade inter-relacional entre Estados, não configuraria necessariamente uma situação de extradição.
Em todo caso, pela minha parte, entendo que não é propriamente o nome que pomos às coisas que altera a natureza das coisas! E, provavelmente, o que aqui está em causa em termos de materialidade ou de natureza fáctica dessa situação é que, de facto, se põe a situação da entrega de alguém que deixará de estar subordinado à tutela da nossa ordem jurídica para passar a estar subordinado à tutela de uma ordem jurídica exterior à do Estado português.
Por isso, ainda que admitindo como razoável todo um debate conceptual em torno da qualificação desta situação da entrega, talvez a jurisprudência das cautelas" nos aconselhe a ponderar que vale a pena conceber uma ideia de que, também aqui, uma aprovação da Convenção do TPI deverá ser feita com a possibilidade constitucional de daí não derivarem eventuais desconformidades futuras quanto à aplicação desta situação da entrega de pessoas justamente ao TPI.
Coloca-se ainda uma outra questão que os trabalhos desta Comissão admitiram ponderar e que se prende com o facto de sabermos que um dos aspectos mais significativos que caracteriza o Estatuto do TPI é o da irrelevância da qualidade oficial de quem for demandado em tribunal. Levantará isto questões específicas, em particular no que diz respeito ao regime das incompatibilidades dos titulares de cargos políticos, de acordo com o que a Constituição prevê nesta matéria? Será suficiente uma cláusula de aceitação do Estatuto do TPI para, também aqui, excepcionarmos na ordem interna a eventual colisão entre estas disposições do Estatuto e as nossas normas relativas ao regime das incompatibilidades?
O Sr. Mota Amaral (PSD): - E das imunidades!
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Das incompatibilidades e das imunidades, diz muito bem o Sr. Deputado Mota Amaral! E levanto esta questão sob forma interrogativa justamente para que sobre ela nos possamos debruçar no nosso processo de reflexão.
Em síntese, Srs. Deputados, penso que são estes os factores de ponderação constitucional que nos aconselham a, justamente em sede de revisão, criar uma solução que permita um acolhimento expresso, pela nossa Constituição, do Estatuto do TPI e, portanto, no âmbito de disposições jurídicas que nele se prevêem.
A técnica constitucional preferida pelo Partido Socialista, bem como - permitam-me que o sublinhe - a apresentada no projecto do PSD, é a de uma cláusula geral que expressamente admita o reconhecimento do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e, deste modo, permita que essa jurisdição do TPI seja integrada em conformidade com a Constituição.
Há, no entanto, uma distinção entre o projecto do PS e o do PSD quanto à integração sistemática desta cláusula.
O Partido Socialista apresenta essa proposta de integração sistemática num artigo em sede de disposições finais da Constituição. Devo confessar que esta opção foi longamente reflectida e devo confessar, também, sem qualquer parti pris, que não é definitiva, o que significa que, pela nossa parte, estamos inteiramente abertos a ponderar os "prós" e os "contras" desta inserção sistemática da norma de acolhimento.
O projecto do PS poderia, desde logo, tê-la integrado no artigo 7.º, que trata da matéria das relações internacionais. E por que é que não o fez? Porventura, o que no artigo 7.º se dispõe quanto aos princípios fundamentais relativos às relações internacionais significa, desde logo, um adquirido muito significativo e um testemunho muito expressivo da Constituição relativamente a uma compreensão do modo como se estruturam essas mesmas relações internacionais. Portanto, é um testemunho da Constituição a favor de uma estrutura estabilizada e significativa do quadro das relações internacionais, tal como a Constituição as reconhece, as admite e nelas aceita participar.
A questão relevante para esta reflexão é a seguinte: no momento em que a revisão constitucional vai ter lugar, verdadeiramente, o Tribunal Penal Internacional ainda não está criado. Estamos, portanto, a referirmo-nos a uma entidade ainda inexistente na ordem jurídica internacional.
Está a decorrer, como sabem, o processo de formalização dos Estados no sentido da adesão à Convenção. Não sabemos quando é que esse processo estará concluído, com a aprovação e a ratificação da Convenção por um número exigível de Estados, para que o TPI possa entrar em vigor, mas é mais do que provável que, no final deste nosso processo de revisão constitucional, ainda não exista qua tale, como ente específico autónomo na ordem internacional.
Por isso nos interrogamos se fará sentido a sua consagração, desde logo, apesar de ser entidade ainda não existente, no quadro que estrutura o domínio relevante e estabilizado da ordem jurídica internacional como tal reconhecido pela Constituição Portuguesa ou se, numa atitude um pouco mais ponderada, não fará mais sentido encarar esta relação entre a ordem constitucional portuguesa e o TPI não como uma relação de estabilização plena no quadro da ordem jurídica internacional mas como algo que especificamente é admitido pela Constituição; algo a que a Constituição se abre na possibilidade de vir a entrar em vigor.
No futuro, quando o TPI, no exercício normal e pleno das suas funções, demonstrar ter ganho um papel estabilizado no quadro das relações jurídicas internacionais, fará