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4 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

funda que essa visita me deixou. Ali, entrando á sala onde Hintze trabalhava, os meus olhos, logo ao transpor a porta, o viram morto. Não pude descrever a dor que me causou o vê-lo estendido sobre o sofá onde o haviam encostado, os braços pendentes, as mãos ainda não cruzadas sobre o peito; serena a sua fronte; semi-cerrados os olhos como ali, na Camara, em horas de cansaço; no rosto, a pallidez que já em vida era penumbra da morte. Tudo nelle era vivo: tudo, menos o sorrir. Esse, não lh'o vi nunca assim nos seus labios: era um sorriso de mocidade, de ternura — quasi um sorriso de criança. Elle parecia dizer á doce companheira da sua vida, abraçada amorosamente ao seu cadaver, cobrindo-lhe de beijos o coração e as mãos, soltando gritos marticulados, que são como os soluços desgrenhados de uma alma dolorida, elle parecia dizer-lhe : «Não chores! Sou feliz! Vê como sorrio! Acabou a vida: acabou a dor». Julguei por instantes que Hintze Ribeiro se erguia e que eu lhe escutava a vou. Era uma illusão: os seus labios sorriam, mas só os mortos sorriem assim.

A eloquencia parlamentar de Hintze Ribeiro, as suas palavras ponderadas e reflectidas, as suas orações sempre prudentes e graves, o seu correcto aprumo, dominavam-nos e venciam nos pela força do seu bem disciplinado cerebro, pela indomabilidade da sua vontade ; e pela convicção sincera e profunda, filha de uma fé ardente — a fé dos francos e dos fortes — da sua fé monarchica, que o fazia convencer de que as instituições dynasticas se confundiam com os destinos da patria.

Hintze Ribeiro foi, como disse o Dr. Antonio Candido, o maior dos parlamentares portugueses, sabendo esgrimir com rara habilidade a sua palavra segura, empregando sempre frases do mais puro laconismo.

Como nenhum, elle cansava o adversario pela attitude nobre e altiva, atacando, como os melhores esgrimistas, só quando o perigo lhe estivesse imminente.

A palavra, nos seus labios, era o vestido da ideia, e a ideia o fruto do trabalho. A maior consolação da sua vida era combater e falar. E a palavra era mais do que a ideia, porque era o seu caracter e era a sua alma.

Hintze Ribeiro desappareceu da vida na hora em que a patria atravessava fundas agonias. Sumiu-se na morte quando todos os homens publicos, com todas as suas energias, são poucos para fazer de uma criança um grande Rei. A essa criança, pelo seu nome e pela sua desgraça, ainda a felicidade pode illuminar o labio triste e o rosto grave e melancolico como o do Rei que a sua missão chamou o duro officio de reinar. Esse officio era arduo sempre: mas, agora, dificilimo, nestes tempos em que o principio da autoridade carece de rejuvenescer se e a vi gorar-se, mas conciliando-o sempre com os principios da moral austera, da fraternidade humana da solidariedade social, do respeito pelos direitos e reclamações que eram, até ha pouco, considerados como douradas utopias e paixões revolucionarias.

Os homens publicos, os estadistas, os conselheiros do novo Rei, devem dizer-lhe as frases de Goethe : «Enchei o vosso cerebro e o vosso coração das cousas e ideias do vosso tempo». E não só das cousas e ideias, como das recordações das pessoas que contribuirem para o seu triunfo.

Os conselheiros do novo Rei deviam lembrar-lhe que Elle era o representante da dynastia de Bragança, cujo fundador dissera no seu testamento que os Reis, mais do que ninguem, deviam dar ao povo a razão dos seus actos; que Elle era descendente de Luiz Filipe, Duque de Orleans, que se sentara na Montanha; d'aquelle outro Duque de Orleans que a seu filho recommendou que fosse sempre um servidor apaixonado e exclusivo da França, e da Revolução; e de Victor Manuel, o unificador da Italia.

O novo Rei foi ferido pela desgraça: e, a este respeito, direi que, tendo os illustres oradores que me precederam falado no attentado de 1 de fevereiro, queria deixar accentuado aqui que o condemnava, porque a minha fé ardente, apaixonada de liberal, não podia olhar sem reprovação um regicidio, como todos os assassinios politicos. O meu coração de democrata revolta-se contra esse acto.

Mas essa criança, como o seu predecessor D. Manuel, que symbolizava a alma da patria na paixão da descoberta e da navegação, pode ter a felicidade de a symbolizar agora, se quiser identificar-se com as reivindicações sociaes e politicas que são a condição da vida dos povos e dos principes.

A Corôa foi-lhe dada pela morte, á semelhança do Rei Venturoso, que a recebeu caida já da cabeça loira da gentil criança que nas margens do Tejo, por uma tragica desgraça, perdeu a vida.

Hintze Ribeiro faz falta, muita falta, porque todos são agora poucos para esta grande tarefa, que é preciso levar a bom termo.

Hintze Ribeiro, embora não tivesse, como Gladstone, que era tambem convictamente monarchico, a sua acção subordinada a um ideal que rasgasse grandes horizontes em prol da humanidade e das reivindicações sociaes, conhecia no entanto profundamente as cousas e os homens e era um espirito forte e reflectido ao serviço de um cerebro bem equilibrado e conciliador.

Por isso, terminando, Sr. Presidente, direi que é minha crença que Hintze Ribeiro contribuiria poderosamente para a grande obra que é preciso encetar desde já, levando o Senhor D. Manuel II a identificar-se com as mais instantes aspirações da alma collectiva da Nação. (Vozes: — Muito bem, muito bem).

(O Digno Par não reviu).

O Sr. D. João de Alarcão: — Sr. Presidente: permitta-me V. Exa. que eu tambem use da palavra, embora pareça audacia fazê-lo depois dos brilhantes discursos proferidos.

Quero associar-me á homenagem presta da aos homens publicos que foram meus collegas, que deixaram na historia o inapagavel brilho das suas virtudes e o fulgido clarão dos seus talentos. Todos foram justamente engrandecidos pela palavra eloquente dos oradores que me precederam, e sê-lo-hão ainda pelos que se succederem, nem a minha palavra pobre poderia dar maior relevo ás altas qualidades d'aquelles cuja memoria se celebra nesta sessão.

Mas não foi para isso que eu pedi a palavra, eu que não represento ninguem nesta casa do Parlamento e que falo apenas em nome da minha saudade, cuja expansão podia permittir-se e perdoar-se pelo respeito que sempre merece a magna de quem a chora.

Entre os homens illustres cujos nomes foram e estão sendo glorificados, pela Camara, ha um que não affirmou a sua modesta individualidade nem nas fulgurações scintillantes do genio, nem nos trabalhos e freimas da actividade politica; e comtudo o seu nome perdura e vive no respeito de todos, num carinhoso affecto geral e n’aquella amoravel sympathia que constitue o maior elogio que pode fazer-se á momoria de um morto.

Refiro-me, Sr. Presidente, ao Conde da Ribeira Grande, aquella singular figura de um fidalgo de raça, tão nobre pelo lustre heraldico da sua familia, como pelas altas qualidades que formavam o seu caracter. Talvez eu devesse limitar as minhas palavras a agradecer em meu nome e da minha familia as referencias elogiosas que justamente me foram feitas; e assim parecerá estranho que seja eu, tão proximo d'elle, que lhe enalteça a memoria numa homenagem quasi pretenciosa e immodesta.

Perdoe-me a Camara, mas trasborda-me do coração o desabafo da minha saudade, e é sempre allivio dos que choram deixar que lhes sangre a pena. O Conde da Ribeira Grande foi para mim