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SESSÃO N.° 2 DE 4 DE MAIO DE 1908 9

Telles de Vasconcellos, regenerador da velha guarda, abandonou o partido, com a morte de Fontes. Com elle me irmanei, em bons tempos, na camaradagem jornalistica.

E que direi de Hinze Ribeiro?

Em 17 de outubro de 1901, saí do partido regenerador com as relações pessoaes e politicas cortadas com Hintze, e nunca mais reatadas. Estou, por consequencia, nos melhores termos de imparcialidade para d'elle me occupar.

Nos annos que decorreram depois ao nosso rompimento, apreciei-lhe os actos, criticando-os acerbamente. Não retiro sequer uma virgula do que então disse e certifiquei. Nem o meu caracter o permittia, nem a memoria de Hinze lucraria com tal palinodia. Elle foi um gigante da tribuna, em que pese aos seus detractores, que os teve e numerosos. No trato intimo era de gentileza encantadora, e foi um trabalhador indefesso e infatigavel.

Nos ultimos tempos da sua vida, passou por desillusões esmagadoras.

É de Machievel este asserto:

«Mais ingrato do que o principe,, o vassalo; mais ingrato do que todos, a mulher».

A mulher nada tem que ver no caso sujeito, e evidentemente o sagaz e astuto florentino foi desprimorosamente injusto para com ella. Dos outros dois termos da afirmação, o primeiro teria quiçá cabimento na sessão transacta d'esta Camara. A Hintze Ribeiro deve-se applicar a excepção que, de resto, confirma a regra.

O povo, essencialmente cioso dos seus idolos, só teve para elle cumplacencias, quando o viu abandonado por quem muito lhe devia. A cidade de Lisboa nunca para com elle tivera afagos de popularidade, com exteriorização enthusiastica. Exclusivamente no seu passamento, Hintze disfructou, sem que a solidão da morte lh'o consentisse apreciar, a reparação com que o povo, severo, mas equitativo, o rehabilitava no seu conceito justiceiro.

O Digno Par Avellar Machado, amigo dedicado de Hintze Ribeiro, e cuja convalescença não lhe permittiu assistir á sessão de hoje, pediu-me que o associasse na manifestação com que celebrasse a memoria do seu extincto chefe. Fica feita a declaração da sua compartilha.

Mas, Sr. Presidente, outros mortos ha ainda a commemorar, e esses arriscaram denodadamente a vida pela patria. Ha cêrca de cincoenta annos estudava eu logica, pelo Genuense, e d'ella retenho ainda este exemplo de silogismo:

« Quem arrisca a vida para salvar a patria é digno de admiracão Scaevola arriscou a vida para salvar a patria, logo Scaevola é digno de admiração».

E como arriscou Scaevola a vida? Porsenna, rei dos Etruscos, pretendia restabelecer em Roma a tyrania de Tarquinio, o Soberbo. Para evitar a regressão do déspota, Scaevola introduziu-se subrepticiamente no campo dos etruscos, no intuito de lhes assassinar o rei. Por equivoco deu a morte ao secretario de Porsenna.

No dia immediato, apresentou-se no acampamento declarando ao rei etrusco que, simplesmente por engano, lhe matara o secretario, porque o que pretendia era matá-lo a elle, e d'esse decidido proposito se não arrependia.

O seu deploravel equivoco levava-o a sacrificar a mão que erradamente assassinara um innocente; e, para esse fim, queimou a corajosamente num braseiro, ficando maneta — do que lhe resultou o apôdo de Scaevola.

Porsenna poupou-lhe a vida, e a historia faz-lhe a merecida justiça. O facto deu se seiscentos annos antes de Christo Vinte e quatro seculos decorridos, Antonio Genovesi vulgarizava o ousado emprehendimento, nos seus compêndios de philosophia, e gerações sobre gerações puderam, pelos respectivos estudantes, apreciar o feito glorioso e patriotico do intrépido cidadão romano.

Os mortos, porém, que me proponho celebrar não só arriscaram, mas deram a vida pela patria, honrando a bandeira das quinas e engrandecendo os creditos nacionaes. A proposta que vou ler melhor exprime o objectivo que tenho em vista. É ella d'este teor:

A Camara, reconhecendo:

Que ao exercito cabe a elevada missão de se identificar com as patrioticas aspirações conciliantes. ordeiras e progressivas.

Que, na metropole, elle tem, nos ultimos tempos, em extraordinario serviço policial sustentado a ordem publica, por moldes sua ves e suasorios, humanitariamente imprescindiveis para quem dispõe da força, com associado acatamento da lei;

Que, no ultramar, elle tem invariavelmente pugnado pela affirmação civilizadora dos direitos nacionaes, evidenciando nas correspondentes pugnas que se teem ferido no campo das armas, com esse nobre objectivo, qualidades profissionaes e civicas que lhe exaltam o credito e penhoram a patria;

Que, no desempenho de tão honrosa, missão, a morte implacavel algumas preciosas existencias ceifou, com doloroso sentir de todos os bons portugueses;

Que, neste pungente transe, é igualmente attingida a armada, por cujos serviços ao Pais ella merece tambem geral encarecimento e estimulo.

Pelos motivos exarados, cuja ponderação se me afigura indubitavelmente intuitiva, a Camara resolve:

1.° Lançar na acta um voto de reconhecido sentimento pelos mortos, sem distincção de hierarchia, das derradeiras campanhas coloniaes, que ainda, até hoje, não tiveram comemoração parlamentar;

2.° Encerrar seguidamente os seus trabalhos dando por este acto, maior realce a tão justa quanto apropriada manifestação. = Sebastião Baracho.

Na quadra indubitavelmente dolorosa que atravessamos, coube effectivamente ao exercito a extraordinaria missão de attenuar os males da Patria. Na metropole, a policia, militar e civil, que devia ser um factor da ordem e amparo dos cidadãos, é desordeira e turbulenta, provocadora e criminosa. Ao exercito tem competido restabelecer o sccego que ella perturba, e d'esse encargo se tem desempenhado suasoria e suavemente, por maneira a despertar os applausos populares.

Nas provincias ultramarinas, em lutas successivas, tem restabelecido o predominio do nome português, tem sido o principal esteio do nosso credito de colonizadores.

No regresso á Patria, os seus graduados são acolhidos delirantemente pela multidão, a qual com elles confraterniza, celebrando-lhes os meritos e exaltando-lhes os serviços.

É consolador registar estes factos, que denotam quanto o exercito se apresenta identificado com a vida nacional.

E mal, muito mal iria se assim não succedesse. A Historia o attesta em numerosos e expressivos acontecimentos.

Para não tomar tempo demasiado á Camara, recordarei apenas um facto confirmativo da minha asserção. Em 1832, a grande massa do exercito servia o absolutismo, autocratico e esmagador. Fizeram-lhe frente os destemidos 7:500, desembarcados no Mindello. Mais do que as armas os sustentaram, na peleja homerica em que andaram empenhados, os principios liberaes, que firmavam o credo redemptor, para fruição de um povo escravizado. Em 24 de julho de 1833, Lisboa era libertada pelo punhado de expedicionarios, que nella deram entrada nessa data immorredoura. Pouco tempo depois, as hostes numerosas, ao serviço da tyrannia, convencionavam em Evora Monte, para não mais terem representação na vida militar e official portuguesa.

Convem não esquecer estas caracteristicas occorrencias, de que resaltam lição e ensino.

Felizmente, em pleno seculo XX, a reacção só pode alimentar doentias preterições. A Liberdade, porem, esmagá-las-ha, com a força potente da crença fortificante, arraigada em todo o coração de verdadeiro português. A identificação do povo com o exercito garante a manutenção do quadro que fica traçado, e que exprime as aspirações nacionaes, no que ellas possuem demais intensamente respeitaveis, no que ellas ostentam de mais garantidamente sadias.

(S. Exa. não reviu).