4 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
casse quaesquer ideias sobre a solução d'estes dois problemas, eu, dir-lhe-hia serenamente, rosto a rosto, que vou dizer nesta camara onde, entre outros, se sentaram o Duque de Loulé, Sá da Bandeira, o Bispo de Viseu, bellas e nobres figuras de tempos bem proximos, mas que já parecem tempos remotos e heroicos pela verdade e nobre altivez com que então se falava ainda aos Reis de Portugal!
Voto contra este projecto. E a minha magua é não possuir tanta força que o pudesse arrancar á discussão! Voto contra a ligação, no mesmo projecto, da fixação da lista civil e da liquidação dos chamados adeantamentos, ligação contraria á feição legal e moral de um projecto que apenas devia referir-se a fixação das sommas destinadas á dotação de El-Rei. Voto contra esta confusão que já trouxe tantas discussões apaixonadas e que, por consummada inhabilidade, veio demorar, prolongar por diversos estadios, um debate que devia ser, de um jacto, illuminado de toda a luz, julgado perante a nação inteira para prestigio de um Rei que devi abrir uma dynastia nova, para socego do país, que carece de repouso fortificador e sincero, que não é a escuridão duvidosa, a sombra suspeita e criminosa. Voto contra a lista civil, que não sei se realiza a sua missão constitucional de manter o decoro da alta dignidade do Rei: voto contra ella em nome da deficiencia de elementos para poder apreciá-la, em nome do prestigio da Coroa, que precisa de arrancar-se á mais tenue sombra de suspeita de confusão entre os dinheiros do povo e o dinheiros do Rei; voto contra ella, porque fica o caminho aberto, pelos exemplos do passado, para aquellas operações que tanto abateram o lustre da instituição monarchica. Voto contra as disposições por que se pretende chegar á liquidação das sommas dadas illegalmente á Casa Real, não somente porque essas disposições foram inseridas no projecto de lei da lista civil, mas ainda porque, sendo essa forma de liquidação susceptivel de complicações nocivas ao bom nome da Coroa, não tendo a clareza e a limpidez de execução indispensaveis num acontecimento que abalou a consciencia nacional, é opposta ás regras do bom-senso politico e adversa aos claros principios da recta e honesta justiça. Exponho assim, sem rebuço, na crueza de uma frase que oxalá pudera ser dura como o aço e inflexivel como o bronze, a minha opinião.
Oxalá ella atravesse as colgaduras e razes dos Paços Reaes! Oxalá a conheça o país inteiro, tão firme é a minha convicção de que, no inicio d'este novo reinado, os homens publicos chamados pelo Rei a acudir ás desgraças da patria, honrados com a suprema confiança de serem investidos em faculdades de Coroa para escolherem, elles, os Ministros do Rei, não podem fazer peor serviço á monarchia do que elaborar, ou sanccionar, este projecto de lei.
Por que, illusões? Por que, sofismas? Elles, esses homens, é que teem a responsabilidade suprema. Se não quisessem, este projecto não era approvado. Elles aconselham, elles votam. Essa responsabilidade fique-lhes.
Eu não a quero, nem pelo país nem pelo Rei. Voto contra, falo contra.
A lista civil! Como é que, perante a sua fixação, perante a obrigação constitucional da monarchia, procedem os homens publicos a quem a Coroa entregou os destinos do país?
As despesas da lista civil, que pertencem aquellas despesas «que se prendem mais directamente á Constituição politica, e que correspondem a obrigações que se não pode illudir sem se faltar ao pacto constitucional» devem merecer a maior attenção dos Parlamentos e o maior cuidado dos Ministros da monarchia. (Apoiados).
Os interesses do povo teem de conjugar-se com o alto respeito e decoro da realeza.
Nada mais deprimente, e até mais perigoso, de que um Chefe de Estado arrastando a sua magistratura, o seu nome e o da sua familia, pelas condições de uma existencia mesquinha e destoante da sua dignidade, perante o povo a cujos destinos preside, e perante as nações estrangeiras, a cujos olhos elle symboliza a representação suprema da patria. (Apoiados).
É certo! Mas nada mais destruidor do prestigio da realeza da que apparecer o Chefe Estado, elle e a sua familia, como sendo um encargo á nação, personagens gozando-se de riqueza e gozos materiaes num país pequeno e pobre, assediado de infortunios, esmagado por desastres economicos e financeiros.
A mais pequena observação do que se passa nas monarchias europeias prova, como diz Greef, que «a dotação dos soberanos é tanto mais elevada quanto o seu poder é mais absoluto; o orgão custa tanto mais quanto é menos aperfeiçoado, mais individualista, menos ao serviço do complexo do Estado e da sociedade cujas funcções são insufficientemente differenciadas e por isso mesmo menos solidarias». Grande e profunda verdade! Não olhemos todas as monarchias. Basta attentar no que se passou na França, que é hoje republicana.
Extingue-se a realeza absoluta em França: e a Luiz XVI, a Assembleia Nacional, toda monarchica, concede-lhe uma lista civil de 25.000:000 de francos.
Veio o imperio, depois de alguns annos de regime republicano, e restabelece a lista civil da realeza bourbonica.
Cae Napoleão I e surge a restauração, com Luiz XVIII e o louco Carlos X, empolgado pela reacção clerical que fazia atravessar o velho Soult, marechal do imperio e filho da revolução, as das de Paris, de cirio na mão e opa sobre o seu uniforme, atrás do andor das procissões; a lista civil sobe a 32.000:000 francos. Os cortesãos e os ultramontanos atiram Carlos X para o exilio; vem a realeza liberal de Luiz Filippe e a lista civil de Luiz Filippe baixa a 13.000:000 francos, para, depois do golpe traiçoeiro de 2 de dezembro, sobrevindo o imperio cesarista e reaccionario de Napoleão III, ella de um salto ascender outra vez a 25.000:000 francos.
A lista civil da monarchia liberal era quasi metade da monarchia ultramontana ou do imperio cesarista! É um facto a affirmação de que a dotação de um Rei é tanto maior quanto mais se aproxima do poder absoluto.
Basta esta consideração, de uma tão profunda verdade, para os homens publicos e os Parlamentos deverem estudar com a maior attenção esse assunto, não com o fim covarde e reservado de deprimir a funcção real, mas de a identificarem com as condições do país e com o fim, elevado e nobre, de realçarem a Coroa, solidarizando-a com o pensar e sentir da nação. Porque é que a Inglaterra, esse grande país de fé monarchica tão apaixonada e profunda, de um lealismo realista tão fervoroso e apregoado, mas de um tamanho espirito legalista e de um tão ardente ciume das prerogativas populares, que Talleyrand disse que ella «tinha em si alguma cousa de republicano» exerce uma tamanha vigilancia na fixação da lista civil e são os maiores, os mais dedicados amigos da realeza, que discutem as verbas, uma a uma, da lista civil, sendo algumas d'essas verbas sujeitas todos os annos ao exame do Parlamento? Porque os seus homens publicos querem, como Disraeli, o humilde hebreu que foi o chefe do partido conservador inglês e governou a autocratica Gran-Bretanha, o Ministro que pôs na cabeça da Rainha Victoria a Coroa Imperial das Indias, querem poder dizer com supremo orgulho: «Não ha Soberano de um grande país que custe ao seu povo tão pouco como o Soberano de Inglaterra».
Porque? Porque ali os homens publicos não teem como ponto de honra monarchico o conceder ao Soberano as sommas que melhor lhe pudessem convir; porque a Inglaterra quer grande, rica, mas respeitada, a Casa Real; porque ali se julga que do dinheiro