1388 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 133
o mundo português, bastando dizer que, fundada a Misericórdia de Lisboa em 1498, logo em 1505 nascia a de S. Tomé, a primeira das 11 que se fundaram em África, em 1520 era criada a de Goa, a primeira das 32 que surgiram na Ásia, e, finalmente, em 1543, aparecia no Brasil a de Santos, a primeira de cerca de 500 Casas de Misericórdia brasileiras que ainda estão em funcionamento para atestarem, para além da independência política do país irmão, o sentimento universalista e cristão do génio português.
Isto no que respeita à expansão no Mundo, porquanto, em relação à metrópole, esta foi tão rápida que, em 1525, ano da morte da fundadora da Misericórdia de Lisboa, já havia 61 Misericórdias espalhadas por todo o País, as quais, imbuídas do espírito de caridade cristã que está na sua origem, desempenhavam importante serviço. Actualmente são 368.
O projecto do Estatuto da Saúde e Assistência, ao atribuir-lhes, sem quebra da tradicional essência católica, e na maior medida possível, o primeiro lugar na actividade hospitalar dos concelhos e as funções de órgão local de saúde e assistência, confia-lhes relevantes funções públicas, sem prejuízo da sua -natureza particular. O Estado pode, na verdade, desempenhar a sua missão assistêncial tanto por intermédio de serviços oficiais como de instituições autónomas, dotadas de personalidade jurídica, criadas por sua iniciativa ou por iniciativa dos particulares, em que delegue, expressa ou tacitamente, parte dos seus poderes.
O problema que se põe, e que respeita tanto às Misericórdias como a outras instituições de assistência, é o do equilíbrio entre a liberdade que resulta da sua autonomia e a necessidade da tutela indispensável à actualização ou coordenação das suas actividades e à eficácia ou rendimento dos seus serviços.
O projecto do Estatuto da Saúde e Assistência considera a actualização das actividades e dos métodos de acção das Misericórdias e prevê para estas instituições um regime especial.
Não definindo em que consiste esse regime, a Câmara limita-se a chamar a atenção para a (necessidade de conciliar as funções a exercer pelo Estado, no que respeita à tutela das Misericórdias, quanto às suas atribuições de carácter assistencial, com o facto de estas instituições serem criadas por iniciativa privada e a sua administração assentar, fundamentalmente, no zelo e dedicação dos seus dirigentes, escolhidos, em regra, de entre os mais dedicados irmãos. Dotados geralmente de invulgar espírito de sacrifício, desinteressados servidores do bem comum, o tempo que consagram a gestão das Misericórdias é roubado às actividades particulares donde tiram os proventos para fazer face à sua sustentação e à de suas famílias. Há, por isso, na medida do possível, que respeitar as suas susceptibilidades e a autonomia e independência das instituições, exercendo junto delas uma acção mais orientadora do que propriamente fiscalizadora.
Tanto no que respeita às Misericórdias, como em relação às outras instituições particulares de assistência, uma coisa terá de estar sempre presente: não podendo o Estado prover a todas as necessidades de ordem sanitária 'ou assistencial, deve fomentar a sua criação e auxiliá-las no desempenho das funções, pois, procedendo assim, realiza, e por forma mais eficaz e menos onerosa, a sua própria missão.
G) Caridade e liberdade
9. O Estatuto da Assistência Social consigna o princípio da liberdade individual da beneficência, salvas as restrições regulamentares dos peditórios públicos.
O projecto, mantendo este princípio, alarga-o ao exercício colectivo da caridade ou da beneficência.
Não podia ser de outra forma. Ainda que a caridade tenha por fundamento o dever moral de socorrer os necessitados ou o preceito religioso da prática das virtudes cristãs, o seu exercício é livre, isto é, cada um pode dar largas à sua generosidade como melhor entender, directa ou indirectamente, escolher o necessitado ou a necessidade a socorrer, determinar o grau de socorro, independentemente de qualquer autorização ou constrangimento. Isto não quer dizer que o bem não deva, sendo possível, fazer-se bem.
Para tanto, a caridade poderá ser organizada com vista a uma repartição justa e equitativa dos benefícios, não dando aos ociosos e vadios tratamento igual ao dispensado aos velhos e incapazes para o trabalho.
Mas organizar a caridade no sentido da justiça social, canalizar os socorros em ordem a obter deles o maior rendimento social, é coisa diferente de criar entraves, pôr diques, ordenar burocràticameute a generosidade particular. O curso desta é livre e só pode sofrer os restrições legais ou outras que resultarem directamente da necessidade de salvaguardar o bem comum.
Dar de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, albergar os que não têm casa, vestir os nus, visitar e tratar os doentes, aconselhar os que erram, ensinar os ignorantes, consolar os tristes, perdoar ou sofrer com paciência as injúrias, rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos, enterrar estes, são outras tantas facetos da caridade, fonte de amor do próximo que se não esgota, medida de solidariedade e de compaixão entre os homens, comunhão dos ricos e dos pobres, sacrifício que dá prazer, flor e fruto da nossa sensibilidade, índice da formação moral e espiritual do homem.
O ponto a que o Cristianismo elevou esta virtude é-nos dado por S. Paulo ao defini-la nestes termos: «Se eu falar as línguas dos homens e dos anjos mas não tiver caridade, sou como o metal que soa ou como o sino que toca. Se eu tiver a fé que transporta montanhas e não tiver caridade, nada sou. Se eu distribuir todos os meus bens para sustento dos pobres e se entregar o meu corpo para ser queimado, mas não tiver caridade, nada disto me aproveita».
E ainda S. Paulo que nos dá a verdadeira natureza da caridade, quando ensina: «A caridade é paciente, é benigna. A caridade não é invejosa, não actua precipitadamente; não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga sobre a iniquidade, mas alegra-se com a verdade, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta».
A caridade, além de paciente e benigna, é discreta, evita toda a aparência de ostentação ou de protecção: «que a tua mão esquerda não saiba o que foz a direita», adverte o Evangelho.
Quem pratica a caridade não necessita de publicidade, basta-lhe a satisfação que dá o cumprimento do dever moral de socorrer os pobres e necessitados.
Mas, se o acto de caridade deve ser ignorado, a caridade em si deve ser exaltada publicamente, para o efeito de chamar a atenção de todos para a necessidade de a praticar, podendo o Estado, nos termos previstos no projecto, conceder facilidades e isenções a favor dos actos de caridade praticados (base XL).
Quanto às modalidades que pode revestir, são tantas quantas forem as necessidades a socorrer ou as dores a suavizar.
Ainda que a sociedade cumpra o dever de combater e prevenir a miséria, há manifestações imprevisíveis e inevitáveis que, uma vez verificadas, têm de ser socorridas.