26 DE NOVEMBRO DE 1966 337
rito marcadamente definido pela legislação portuguesa posterior a 1926. Assim, em matéria de casamento concordatário e de casamento civil, de divórcio e de separação de pessoas e dos bens, em matéria de relações pessoais e patrimoniais dos cônjuges, em matéria do poder paternal e de tutela, em matéria de filiação ilegítima, etc.
Mas salvaguardados os valetes havidos como pontos de honra, não deixa o novo Código de traduzir as alterações essenciais postuladas pela evolução das concepções de vida e do pensamento moderno. Em nome da unidade da família, o legislador mantém o princípio da chefia do mando e celtas restrições na esfera pessoal e patrimonial da mulher casada. Porém, ampliam-se os poderes desta e eliminam-se alguns infundados limites à sua capacidade. Ao mesmo tempo que se proclama a simples comunhão de adquiridos como regime supletivo. Reforçam-se os meios de fiscalização do exercício do poder paternal - considerado hoje em dia um autêntico poder-dever, ou direito-função-, além de se reconhecer «expressamente certa capacidade de exercício ao menor sujeito ao poder paternal, de harmonia com a sua capacidade natural».
A aperteza do tempo que me é lícito tomar a VV. Ex.ªs não permite uma referência descritiva, embora abreviada, às principais inovações que o Código consagra no desenvolvimento das directrizes gerais que acabámos de percorrer unificando-se as fracções desarticuladas da nossa legislação vigente, esclarecem-se dúvidas, consolidam-se ou rectificam-se doutrinas, integram-se lacunas sensíveis, criam-se institutos e princípios novos. Fique-se porém certo de que, tanto relativamente ao plano sistemático adoptado e à arrumação das matérias, como pelo que respeita a problemática e à formulação das soluções, a obra beneficia amplamente - honra soja aos seus autores - das mais recentes conquistas e aperfeiçoamentos da técnica legislativa e da ciência privatista moderna. Procurou-se a lição do direito comparado, sem contudo se descurarem as condições próprias do meio português.
Constitui ainda um atributo importante do diploma o estilo cuidado, a pureza e a elegante simplicidade da linguagem em que se encontra redigido, a revelar mesmo aqui e ali um intuito de purificação terminológica.
Não me parece difícil situar o novo Código Civil Português no conjunto europeu Ao lado das duas grandes famílias de códigos modernos, a dos que entroncam no Código francês de 1804 e a dos que partiram do Código alemão de 1900, uma outra mais recente se desenha, à qual, pela sua posição intermédia entre as anteriores, já se adivinha uma importante influência no futuro. Tem-se considerado o Código italiano de 1942 como o modelo mais representativo deste terceiro grupo em que o Código português também agora se integra. Pois não se vê que o diploma português sofra qualquer desdouro no confronto, ou até -e por que não afirmá-lo afoitamente? - que não leve vantagem em significativos aspectos.
Sr Presidente e Dignos Procuradores: Proferindo-se em reunião plenária da Câmara Corporativa - instituição credora de tão relevantes serviços prestados às leis do País - uma palavra, ainda que singela, a propósito da conclusão do novo Código Civil, este facto assumirá, decerto, o significado histórico de um voto. E terá ainda o sentido de uma homenagem da Câmara a todos os que ao longo de vinte e dois anos colaboraram nessa obra monumental e ao estadista que nos últimos dois lustros foi a grande alma do empreendimento, impulsionando-o e dirigindo-o efectivamente. Não se levará a mal que estejam de modo particular em nosso pensamento os antigos e os actuais Procuradores que pertenceram à comissão redactora.
Abandonámos por instantes, meus Senhores, aquela pequena sala ali ao lado onde a Câmara costuma trabalhar com serena objectividade e discrição de encómios. Nesse mesmo espírito me dirigi hoje a VV. Ex.º, refreando entusiasmos ou palavras que pudessem traduzir sentimento pessoais De resto, foi com a mais admirável simplicidade que decorreu a elaboração dos anteprojectos e não menos a revisão final sem as ressonâncias fáceis, dia após dia, na vigília silenciosa dos gabinetes, como quem deseja ser ignorado porque faz as coisas por dever e não à espera dos louvores públicos, mas com a mesma fé e carinho do lavrador que lança a semente à terra sem marcar as horas de trabalho.
Ser-me-á lícita uma última reflexão.
Todos sentimos perfeitamente que um Código Civil reúna a disciplina que mais de perto envolve e toca a nossa existência, desde que vimos ao mundo até que morremos, e mesmo de certo modo para além desses momentos. Sob a égide dos seus preceitos realiza-se a personalidade dos homens, tanto nos aspectos epidérmicos do viver diário como nos actos que atingem o mais íntimo e profundo da consciência Representa a matriz onde em última análise se encontra a inspiração e o norte dos vários ramos jurídicos especializados. E poderá caber-lhe ainda, em épocas de crise do direito, o destino de baluarte de resistência dos foros individuais e colectivos.
Um dos mais notáveis pensadores jurídicos de nossos dias, F Wreacker, confia às virtudes da actual ciência do direito privado a tarefa árdua de «captar de modo renovado uma justa e acabada imagem da realidade e de superá-la metódica e sistematicamente».
Visa a nossa civilística, com o novo diploma, restaurar no espírito e na forma essa perdida consonância entre a imagem social e a imagem jurídica. E poder-se-á dizer, olhando o conjunto, que satisfaz em grau muito elevada às exigências de justiça, utilidade, praticabilidade, certeza e estabilidade, ditadas pelo sentimento jurídico prevalente na sociedade portuguesa. Não se pretende que esteja isento de mácula - e qual a obra humana livre de reparo? Nem se ignoram possíveis dissensos sobre alguns pontos que envolvem transcendentes convicções metajurídicas ou meras divergências de ordem técnica. Tais controvérsias são muito naturais e desejáveis, como sinal de interesse pela empresa e da capacidade pensante da Nação. Deverá haver sempre louvores e críticas bem intencionados, como os que se esperam dos leitores amigos.
Do que não resta dúvida é de que o futuro Código Civil a todos poderá servir, e que representa -conforme afirmou sem o mínimo exagero o Ministro Antunes Varela- «não só o empreendimento mais complexo, mas também a tarefa de mais ampla projecção a que os juristas portugueses se abalançaram no decurso do século». Os benefícios imediatos da obra são muitos e evidentes, mas apenas a longo prazo o País terá oportunidade de apreciar a sua plena frutificação sazonada.
Podem os regimes políticos de todas as latitudes promover as mais espantosas e espectaculares realizações materiais que caracterizam o nosso tempo. Nunca deixarão, todavia, uma obra na verdade autêntica, perene de significado, profunda e duradoura, quando o progresso técnico não seja acompanhado de um paralelo progresso moral. Pois neste ano em que se festejam as instituições políticas sob cujo signo nasceu o segundo Código Civil Português, não se poderá escolher melhor mensagem da geração presente às gerações futuras do que esta, a de firme crença no direito e nos valores ideais, que ele testemunha e simboliza.
Vozes: - Muito bem, muito bem!