20 DE FEVEREIRO DE 1942 229
Mentalidade rasgada e aberta a todos as iniciativas fecundas e a todas as ideas novas, nunca se deixou atrasar nem envelhecer; ao contrário, aceitou sempre, com entusiasmo e alvoroço, os princípios de renovação e de progresso que se propunham introduzir algum aperfeiçoamento na organização social ou jurídica.
A sua função de magistrado não prejudicou nem esterilizou os voos do seu espírito. Quando há dezasseis anos se iniciou em Portugal, na esfera da administração da justiça, o que podemos chamar a nova ordem judiciária, da revolução profunda operada nas ideas e nos costumes, nas leis e nas instituições, nos quadros e nos serviços, pela acção ousada do Ministro da Justiça, Dr. Manuel Rodrigues, encontrou logo em Vasco Borges um adepto fervoroso e um partidário convicto. E a adesão a tais reformas tinha algum merecimento nesses tempos de luta apaixonada e de hostilidade acesa contra o novo sistema judiciário e processual.
Vasco Borges era então juiz do Tribunal do Comércio de Lisboa; ocupava precisamente um posto da maior responsabilidade e do maior destaque no meio forense da capital do País; pois o seu espírito vivo, desenvolto e irrequieto não se acobardou nem se submeteu perante a campanha empreendida contra os decretos do Ministro da Justiça; pelo contrário, pôs, desde a primeira hora, ao serviço dos novos princípios todo o ardor da sua alma juvenil e todo o fogo do seu entusiasmo sincero.
Pressa conjuntura o Dr. Vasco Borges ainda não fizera a sua profissão de fé nos destinos e nos processos da Revolução Nacional; achava-se ainda ligado às doutrinas e aos métodos da política demo-liberal; mas estou em crer que foi por aqui que começou a sua conversão, foi este o primeiro rebate da sua consciência no percurso da sua Estrada de Damasco.
Quando, dois anos depois, adquiriu a convicção segura de que a Nação Portuguesa entrara no caminho do ressurgimento pela mão hábil e firme de um chefe excepcional, Vasco Borges não hesitou mais: atirou para trás das costas com todas as tibiezas e com todos os preconceitos e, num movimento corajoso do seu ânimo, fez a declaração pública da sua confiança, nos homens e nas promessas do Estado Novo.
E é de justiça reconhecer e proclamar neste lugar, com toda a solenidade, que até ao último momento da sua vida serviu com lealdade e com fervor a causa do nacionalismo português.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Há que prestar esta homenagem à sua memória; homenagem tanto mais justa quanto é certo que a. sua exaltada sensibilidade política e a veemência do seu carácter de lutador ardente e impetuoso pareciam rebeldes à disciplina severa de um regime autoritário.
A sua ascensão ao cargo de juiz do Supremo Tribunal de Justiça escandalizou alguns espíritos exigentes e inquietos; mas. porque acompanhei com atenção a sua actividade no exercício da mais alta magistratura judicial do País, posso testemunhar, com perfeito conhecimento de causa e escrupuloso respeito pela verdade, que serviu esse lugar com honra e dignidade, com zêlo e isenção (Apoiados); estudava os processos com cuidado e trabalhava os seus acórdãos com devoção. O ilustre estadista que o nomeou não teve motivos para se arrepender do seu acto.
Nesta Assemblea, em cujos trabalhos tomou parte desde a primeira hora e que lhe mereceu sempre o mais desvelado interesse, frequentes vezes se fez ouvir a sua palavra quente, vibrante e desassombrada; e nunca deixou de combater por pausas nobres e por ideas generosas. As duas últimas ocasiões em que aqui falou foi para
exaltar a figura do glorioso marinheiro Azevedo Coutinho e para chamar a atenção dos poderes públicos para a filha do heróico militar Caldas Xavier.
O seu brado angustioso a favor da herdeira do nome aureolado de Caldas Xavier foi logo ouvido e satisfeito; quanto à sua iniciativa feliz a respeito do valoroso oficial da armada portuguesa João de Azevedo Coutinho, a Providência não lhe concedeu a mercê de a ver convertida em realidade; mas certo estou de que, dentro de dois dias, esta Assemblea vai secundar o gesto magnífico do malogrado Deputado.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: -Meus senhores: em nome da Assemblea Nacional inclino-me, compungido e consternado, perante a memória do Dr. Vasco Borges.
Vozes : - Muito bem, muito bem!
O Sr. Ulisses Cortês:- Sr. Presidente: como V. Ex.ª acentuou em palavras eloquentes, fomos anteontem dolorosamente surpreendidos pelo falecimento inesperado do Sr. Dr. Vasco Borges, nosso companheiro de trabalhos nesta Assemblea, homem público dos mais devotados ao seu país, nacionalista de sempre, que hoje ocupava, por sentimento e por inteligência, um lugar de relevo nas primeiras filas dos servidores da Revolução.
Sob o domínio de sentimentos que não sabemos dissimular e de uma emoção que debalde procuraríamos reprimir, não nos é possível, nesta hora de luto e de amargura, render à memória do colega e do amigo mais do que algumas palavras tumultuárias de profunda e recolhida saudade.
Figura de rara gentileza moral, arrebatado e emotivo, deixando-se muitas vezes conduzir menos pela sua clara e penetrante inteligência do que pelos impulsos generosos do seu temperamento impetuoso, havia no fundo de todas as suas atitudes, apesar de certas aparências contraditórias, uma linha interior de coerência e uma identidade substancial de pensamento que documentavam a sua sinceridade e constituíam a base profunda da sua evolução política.
Através da sua carreira agitada e longa poucos demonstraram como ele espírito de bem servir, culto da Pátria, coragem cívica, abnegação que não conhecia limites, devotamento total, que é privilégio das grandes almas e das fortes personalidades.
O seu nome ficou ligado a medidas governativas de largo alcance, nas quais sobretudo revelou, como no caso dos bairros sociais, dos Transportes Marítimos do Estado e do Angola e Metrópole, a intransigência dos seus princípios morais, a intolerância da sua noção de honra, a rigidez da sua integridade.
Como magistrado procurou prestigiar a função pelo seu amor ardente da verdade e da justiça e pela inteireza das suas decisões, sempre orientadas pelos imperativos da sua consciência e por um sentido de equidade, que era para ele a própria substância do direito.
Estamos a vê-lo ainda nesta sala, vibrante e inquieto, dando sempre o exemplo da disciplina, da obediência, que não era servilismo nem abdicação, da confiança cega na clarividência dos chefes, da fé sempre viva nos destinos da Revolução.
Caiu em pleno combate nacionalista, a poucos dias da discussão do seu projecto de lei, que constituiria o seu último acto político e com p qual pretendia homenagear, por serviços prestados à Pátria, uma alta figura de português.
Morreu pobre, deixando-nos, porém, o legado opulento do seu aprumo moral, do seu forte e inflexível desassombro, da sua honestidade imaculada, do seu idealismo e do seu desinteresse.