186 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 53
lhosa de um Atlântico Lusíada - o Atlântico Sul -, nas duas ribas do qual lançou raízes o doce falar camoneano.
Sei que não tem faltado nas duas pátrias quem afirme, como fatalidade invencível, a separação linguística dos dois países, pois que as línguas são expressões telúricas, fôrças naturais que estuam para além de todas as convenções literárias. Creio, porém, haver por trás desta afirmação uma heresia social e um êrro crítico. Se a cultura não se pode alhear da natureza, sob pena
de se cair no verbalismo, não pode também subordinar-se absolutamente à natureza. A natureza entregue a si própria é a desordem - ela e de uma insensibilidade absoluta, de uma imoralidade transcendente, dizia Renan. Toda a cultura implica uma supremacia do homem sôbre as fôrças cegas e os impulsos naturais. De um lado está o espírito, do outro a lógica bárbara do instinto ...
Sôbre o aspecto puramente linguístico, a história encarrega-se de nos fornecer uma multidão de exemplos demonstrativos da sem-razão da afirmação. Podemos mesmo dizer que todas as grandes línguas - as línguas que se projectaram nobremente no mundo - são vitórias, político-literárias, ou, melhor, vitórias culturais sôbre fôrças divergentes. O italiano não passa de um falar local - o toscano -, fixado pelo milagre da Divina Comédia; o espanhol é o castelhano, tornado língua nacional, e o próprio francês - como demonstrou o grande mestre que se chama Fernando Brunot - é apenas a supremacia literária da burguesia de Paris, adoptada depois pela Côrte. Não se tivesse a Grécia erguido por cima de todas as divergências políticas e regionalismos linguísticos até à concepção moral e literária de Pan-Helena, e as suas vozes teriam ficado sem eco no mundo. O mesmo podemos dizer de Roma. O latim literário - o latim que guardou para os séculos o pensamento e a sensibilidade do mundo romano - diferia tanto da linguagem vulgar, não evocando mesmo os falares provinciais, que Cícero afirmava: «Se falasse em casa como falo no Senado ninguém me compreenderia».
Há entre o falar das cidades portuguesas e das cidades brasileiras diferenças mínimas, comparadas com as divergências dialectais que se encontram em quási todos os países da Europa, sem que isso os tenha impedido de formar línguas gerais, que, por vezes, como acontece com o francês, ultrapassam fronteiras políticas. Nem a distância pode servir de argumento para inutilizar a lição da história, pois, mercê da técnica moderna - a telefonia, o correio, a imprensa, o avião -, Portugal e o Brasil estão incomparàvelmente mais perto do que Roma estava das províncias remotas, e mesmo do que algumas das cidades gregas entre si. É infinitamente mais fácil ir hoje ao Brasil, receber notícias do Brasil, do que era outrora, na Idade Média ou nos claros dias do Renascimento, isto é, quando se definiram as línguas modernas, ir de um extremo ao outro da França.
Se todos nós, portugueses e brasileiros, devemos reagir contra qualquer barbarização da língua, não a devemos imobilizar artificialmente em nome de um ideal filípico de centralização, como diria Gilberto Freyre. Todas as aquisições feitas em harmonia com o espírito e a estrutura da língua são legítimas e, como tal, devem ser consideradas por todos, quer tenham entrado no idioma através do Brasil, quer através de Portugal. Assim o exige a concepção da língua transoceânica. Uma grande amizade pressupõe uma mútua compreensão.
Sr. Presidente: a convenção linguística declarou que a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras ficam «órgãos consultivos» dos seus governos, em matéria ortográfica. É justo. As duas Academias manifestaram a mais elevada compreensão no assunto. A elas se deve, em grande parte, êste novo abraço luso-brasileiro. Além disso, a sua estabilidade e permanência permitem uma continuidade de directrizes que não haveria com informadores de ocasião.
Mas ao lado do problema da unidade da língua há o problema da sua irradiação e da sua defesa. O Instituto para a Alta Cultura - cujas funções são múltiplas - tem desenvolvido uma actividade notável na criação de cadeiras de português junto das Universidades estrangeiras. Julgo, porém, que toda esta política da língua tem de ser coordenada.
Não basta a aproximação com o Brasil - e a Convenção reconhece-o - para o estabelecimento de uma norma ortográfica, pois o Brasil tem o mesmo interêsse que nós e, direi até, o mesmo direito e a mesma obrigação de irradiar e defender o idioma comum.
Já uma vez, depois de uma dramática conversa com Carlos Malheiro Dias, sugeri a um Ministro da Educação Nacional a conveniência que haveria em se tentar a criação de dois organismos paralelos - no Brasil e em Portugal - especialmente encarregados de estudar e coordenar a política da língua. Todos os anos reunidos alternadamente numa cidade do Brasil e numa cidade de Portugal, os delegados das duas nações definiriam as linhas gerais dessa actividade.
Pouco importa, porém, a constituição ou a escolha dos organismos encarregados desta missão; o essencial é que se entre numa política efectiva e sistemática de colaboração luso-brasileira neste capítulo e que ao lado dos técnicos, apareçam os homens de ideas gerais, conhecedores do mundo, para que o problema não fique estrangulado em discussões eruditas.
Não basta criar cadeiras de português junto das Universidades europeias. É preciso fortalecer os numerosos núcleos de língua portuguesa espalhados pelo mundo e que estão a desaparecer.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Vários estrangeiros, como o Prof. Fokker e o Dr. Heilingers, notaram a extraordinária resistência e vitalidade da nossa língua ao estudarem a influência do português no Oriente. Por seu lado, o escritor brasileiro Salvador de Mendonça pôde verificar a mesma energia no vasto formigueiro humano dos Estados Unidos, onde pululam numerosas colónias adventícias. O próprio alemão, considerado das línguas mais resistentes, é aí, diz êle, triturado mais depressa pela fôrça absorvente do meio do que o nosso idioma - idioma curtido pelo sol de todos os climas, borrifado pela água de todos os oceanos. Mas, por muito resistente que êle seja, o tempo, só tempo que tudo desbarata», acaba por vencer, se nos desinteressarmos destas colónias de sangue e das simples colónias da língua ...
Sr. Presidente: à língua portuguesa coube o papel, como diz o Prof. Afrânio Peixoto, de derramar a cultura mediterrânea no Atlântico. Por ela se puseram em contacto os vários oceanos e continentes distantes. Durante três séculos foi também a grande língua comercial do Indico, língua diplomática, língua marinha e aventureira. Através dela selaram tratos comerciais nas mais desvairadas partes do mundo e milhões de almas escutaram a voz da redenção, com a história da Jesus, sua missão, os seus milagres e a sua bondada sem limites. Formosamente o grande João de Barros a denominou o novo apóstolo e Duarte Nunes de Leão lhe chamou língua bem-aventurada ...
Poucos destinos mais belos do que os desta velha língua rural, aparentemente condenada pela estreiteza do território a um quási anonimato, mas que um dia embarcou e deu volta, ao mundo.