190 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 53
menos autoridade, extrair desta Convenção as consequências ou as possibilidades políticas que comporta.
Julgo que se poderá acaso ficar com uma idea, que me parece deminuída, do alcance da Convenção com o Brasil se assentarmos em que se trata apenas de uma convenção ortográfica, como porventura se poderia depreender de uma leitura ligeira do próprio parecer da Câmara Corporativa e da designação oficial que lhe foi dada - de Convenção Ortográfica.
Esta Convenção tem dois fins:
O primeiro, como mesmo no preâmbulo da Convenção se diz, é o de assegurar a defesa, a expansão e o prestígio da língua portuguesa no mundo. No artigo 1.º é isso perfeitamente claro: as altas partes contratantes prometem-se estreita colaboração em tudo quanto diga respeito à conservação, defesa e expansão da língua portuguesa no mundo.
Há um outro fim, que no preâmbulo da Convenção se fixa igualmente. E é êste: regular por mútuo acôrdo e de modo estável o respectivo sistema ortográfico.
O fim proposto nesta resolução é desenvolvido, fixado e, por assim dizer, regulado nos artigos 2.º, 3.º e 4.º da Convenção.
Êste fim, porém, dentro da intenção geral de assegurar a defesa, a expansão e o prestígio da língua portuguesa no mundo, parece-me, porém, que talvez se deva considerar, Sr. Presidente, duma maneira mais clara, como a primeira consequência da Convenção.
Assegurar a defesa, a expansão e o prestígio da língua portuguesa no mundo não pode fazer-se, ou pelo menos poderemos nós esperar que se não faça, apenas por uma convenção de ordem ortográfica, até porque, como V. Ex.ªs muito bem sabem, a ortografia é apenas a expressão escrita da língua viva - da língua oral.
É evidente que há todo o interêsse, que há o mais alto interêsse político, em que todos os indivíduos que falam, escrevem e usam no seu trato cotidiano a língua portuguesa, ou porque seja a sua língua maternal, ou porque a aprenderam por necessidade e cultura, ou necessidades de comércio, é evidente, digo, que há a maior conveniência em que todos escrevam a mesma palavra da mesma forma em qualquer país que seja.
Simplesmente, não é pròpriamente das atribuições desta Câmara se uma palavra se deve asar com s ou z, mas sim declarar que se prestou um alto serviço ao País fixando um formulário ortográfico sob cujas bases científicas não cabe a esta Assemblea dar parecer, que deve todavia, tirar as consequências políticas, a lição política da decisão tomada.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Mas é também evidente que, quanto a ortografia, só interessa que os portugueses, os brasileiros, ou quem quere que seja, escrevam a língua portuguesa com a mesma ortografia, pela maior facilidade que assim existe de a aprender e através dela se poderem compreender todos os tesouros de cultura e outros que pela língua portuguesa, como instrumento de futuro, se realizaram e promoveram.
Mas o primeiro fim da Convenção, Sr. Presidente, é extraordinàriamente mais vasto.
Pela primeira vez, julgo, países da mesma língua se juntaram para declarar que um certo idioma é património comum: dois países se reuniram para afirmar que estão dispostos a dar-se mútuo auxílio, para que na realidade a língua que ambos falam, e que é o instrumento da sua cultura, das suas aspirações, dos seus sentimentos e das suas ideas, seja devidamente guardada e devidamente socorrida em todos os esforços de expansão.
Parece-me, Sr. Presidente, que é a primeira vez que isto se faz no mundo; e esta declaração do reconhecimento da existência dum certo instrumento linguístico, capaz de representar os valores espirituais mais elevados, julgo eu que é efectivamente a primeira conclusão política a louvar e a agradecer a quem a negociou e levou a cabo.
A língua portuguesa tem para nós um significado de tal maneira íntimo que somos levados, muitas vezes erradamente, a considerá-la como propriedade nossa exclusiva.
A grandeza do esfôrço português na expansão da língua vem de termos sido capazes, algum dia, de a fazermos também propriedade de outros; e isto, em vez de ser humilhação, julgando que outros se apropriariam da nossa própria língua, deverá ser considerado uma das razões de orgulho mais forte que uma história de oito séculos nos legou.
Acresce que a língua portuguesa nos dá razões tam fortes para ser considerada num sentido nacionalista português como num sentido nacionalista brasileiro. Mas, precisamente porque é uma língua que espalhámos pelo mundo e afixámos definitivamente em regiões enormes, temos a possibilidade de verificar como ela é já por si também, no seu estudo meticuloso, no seu estudo principalmente vocabular, um instrumento de cultura que tem um significado ao mesmo tempo nacionalista e universalista.
Não dissentirei, como disse de comêço, os problemas científicos que outros, em revistas da especialidade - ou em livros ou em jornais -, tiveram já ocasião de estudar.
Direi, porém, que há um aspecto que me interessa frisar: ao contrário do que acontece tantas vezes, em que quási todos andam à procura do galicismo, para o afastar, ninguém se lembra, por via de regra, do maior galicismo de todos, que é êste.
A certa altura se pensou que seria possível fixar a língua viva de um povo que não desistiu de ser maior cada hora. A certa altura se pensou isto, lembrando-se que no século XVII a língua francesa literária se fixou. Mas só poderia ser tomada uma posição destas perante a língua portuguesa e para com a língua portuguesa esquecendo-se que, parece-me, o carácter verdadeiramente excepcional, expressivo e nacionalista que ela, tomou se deve à recolha de vocábulos trazidos de todo o mundo com as suas mercancias. Fomos a toda a parte e a toda a parte levámos a língua, extraindo de lá, para a enriquecer, não para a empobrecer, vocábulos que são hoje considerados do mais perfeito cunho nacional. Todavia, nem tudo que recolhemos veio afectar a feição da língua que recebemos balbuciante, no comêço da vida nacional, há oito séculos.
Uma base latina, muito mais restrita do que vulgarmente se julga, meia dúzia de vocábulos anteriores aos romanos, alguma influência germânica, certo número, bastante acrescentado, de palavras de origem árabe: mas isso não constituiu, Sr. Presidente, senão uma pequena parte do vocabulário português, aquele vocabulário com que os grandes artistas da prosa ou do verso haviam de exprimir os seus pensamentos e obras.
O dicionário dos grandes escritores portugueses foi-se constituindo muito mais tarde, quando os portugueses começaram a abrir os caminhos de todos os mares, para chegarem a todas as terras, para irem até todos os povos e idiomas.
Terra de marinheiros, de lavradores e de comerciantes, talvez ainda mais do que terra de poetas, levámos, fomos a todo o mundo buscar mercadorias e, num quadro político propício, animados por uma idea política, transmitir a experiência da formação religiosa que tivemos; mas fomos também buscar palavras correspondentes às cousas novas que encontrámos e aos sentimentos novos que se iam despertando ....