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3 DE MARÇO DE 1944 191

Pois bem: quando se impôs o famoso galicismo a que aludimos, proibindo a integração na língua de palavras novas, de qualquer origem, era como se prendessem a língua portuguesa, como se faz a um homem quando se mete num colete de fôrças, sem se tratar de saber se isso seria possível ou não.
Já se não admitia que um homem de Angola ou de Moçambique adaptasse ao seu sentir e ao seu espírito um vocábulo que não encontrou forma de substituir por outro para exprimir a impressão que lhe despertou a própria terra de lá, as próprias condições do clima ou até mesmo a natureza do objecto a designar, obrigando-o a chamar por outro nome a cousa nova.
Seria realmente limitar as possibilidades de enriquecimento e expansão da língua, e foi contra isso que muita gente sentiu, sem às vezes o saber exprimir, uma espécie de rebelião. Mas para nós semelhante estado de espírito teve outra consequência mais grave: o de fechar o vocabulário da língua portuguesa àqueles vocábulos que iam aparecendo no Brasil, dando a idea aos brasileiros de que não seria possível admitir que tais vocábulos entrassem na língua portuguesa.
Outra consequência, pois, desta Convenção: é que se não faz destrinça, antes, pelo contrário, se afirma, que a língua pode ser completada e enriquecida por todos aqueles que aprenderam a falá-la, ou, melhor - e desculpem-me V. Ex.ªs a alusão -, como diz um grande escritor da língua portuguesa, por todos aqueles que mamaram a língua nacional.
A língua que nós realmente mamámos é a mesma dos brasileiros, mas é também a mesma dos portugueses da metrópole e de todo o Império, e a sua capacidade de absorpção de vocábulos de todas as origens, fundidos no cadinho da língua portuguesa, essa capacidade, repito, tanto existe na metrópole como no Brasil, tanto existe neste pequeno rectângulo da Europa, em acto e em potência (mas principalmente mais em potência do que em acto), como no Império Colonial Português.
Recordem-se V. Ex.ªs de que essa língua literária - língua de civilização -, capaz de exprimir todos os sentimentos e todos os pensamentos, existia quando o Brasil nasceu e nós o criámos. Pode dizer-se que a ocupação do Brasil se fez em primeiro lugar pelos missionários, isto é, antes que estivesse organizado administrativamente o Brasil. Os missionários e os mercadores começavam já antes disto, efectivamente, no seu labor, consciente ou inconsciente, de ensinar a língua portuguesa aos novos povos descobertos. Era o idioma que nesse momento se transformava, para ser na realidade um grande instrumento de cultura.
Todas as palavras que durante os sessenta anos imediatamente anteriores, pouco mais ou menos, se tinham criado para corresponder ao desenvolvimento da actividade marítima de Portugal existiam já na língua que nós levámos para o Brasil. Todas elas iam sendo, pouco a pouco, transmitidas à gente nova que encontrámos no Brasil, na África e nas regiões ocupadas por Portugal além do -Cabo da Boa Esperança.
Mas, voltando ao problema pròpriamente do Brasil, reparem V. Ex.ªs que verdadeiramente a ocupação territorial do Brasil se pôde fazer apenas quando se efectuou a sua ocupação linguística. Antes de o Brasil ter sido verdadeiramente uma colónia perfeita de Portugal naquele tempo, foi necessário que a ocupação se fizesse através do idioma. O primeiro esfôrço maior, o mais intencional que houve, foi decerto o de obedecer ao espirito de cruzada e transmitir aos indígenas a religião católica, porque tinha sido nesta que nós próprios nos havíamos formado e firmado antes de nascer em nós a idea de não desistirmos de vir a ser uma grande nação.
Mas, como disse, outra preocupação houve tam grande, embora não talvez tam elevada, como a de salvar as almas, mas que era quási tam transcendente como essa outra missão: foi a preocupação de fazer a ocupação linguística e transmitir aos indígenas do Brasil a língua que nós próprios falávamos.
Foi o segundo dom que os portugueses para lá levaram, sob o ponto de vista nacionalista quási o primeiro.
É evidente, Sr. Presidente, que não seria possível manter e realizar a unidade territorial do País se os portugueses não atravessassem para além da linha de Tordesilhas e não fôssem realizar a ocupação efectiva de uma região que tinha para cima de 8 milhões de quilómetros quadrados.
Para que todos pudessem falar português vejam V. Ex.ªs que prodígios de tenacidade e de subtileza não foi preciso realizar, tanto mais que, se os escassos 2 milhões de portugueses que então eram embarcassem para o Brasil, ainda o Brasil ficaria por ocupar. Tudo se fez em virtude do entusiasmo religioso e da tenacidade de trabalho efectuado pelos administradores, pelos mercadores, num quadro político que parece ter sido preparado para efectuar essa ocupação.
Poderei dizer, como já se disse, que a unidade linguística do Brasil, a sua unidade religiosa, a sua unidade territorial, são das maiores surprêsas da história, uma surprêsa que mal se compreende se realmente não pensarmos que todos os portugueses estavam de facto empenhados com entusiasmo e desinterêsse político numa aventura, que é também uma das mais belas emprêsas pensadas da história. Emprêsa devidamente pensada, mas não retiro a palavra «aventura», porque há nela qualquer cousa que a excede, o que se possa dizer premeditadamente estudada.
Agora poderíamos fazer, se quiséssemos, com alguma imaginação, mas sem necessidade de fantasias, através do vocabulário português a história da expansão portuguesa no mundo. Marcarmos a nossa ida a Ceuta e a nossa permanência com alguns vocábulos de origem árabe, muito diferentes daqueles que herdámos pela ocupação maometana da Península; com alguns vocábulos de origem africana, a nossa penetração e permanência na África negra; com alguns vocábulos de origem hindu, a nossa ida e expansão pela índia; com alguns vocábulos de origem malásia, de origem japonesa e de origem chinesa, a nossa expansão na Ásia, e com muitíssimos vocábulos da língua brasileira, o caminho percorrido por nós e pelo idioma português no Brasil, emfim, por todos os mares e através de todos es caminhos da Terra.
Julgo que é realmente êste um dos motivos maiores do orgulho que podemos ter: o de termos levado connosco tantas possibilidades de fixação. Para que não nos esquecêssemos das terras, trazíamos de lá as palavras, guardando-as como lembrança e estímulo para não acabarmos com têm acabado tantas nações que nem rasto deixaram no mundo.
Agora a língua portuguesa tem a boa fortuna, fortuna rara, de ser o instrumento da expressão de duas culturas afins, mas diferenciadas pelo temperamento e pelos interesses variados da cultura brasileira e da cultura portuguesa, dos interesses brasileiros e dos interesses portugueses, das aspirações brasileiras e das aspirações portuguesas.
Repare, porém, V. Ex.ª, Sr. Presidente, que temos vivido há mais de um século como se estas realidades profundas não fôssem evidentes e patentíssimas.
Temos vivido há mais de um século como se na verdade os dois Países e os dois povos falassem outra língua ou existisse a mesma língua para nos desentendermos nela, como um dia disse um grande poeta português.