3 DE JULHO DE 1915
707
dades públicas, para se afirmar que as liberdades fundamentais estão constitucionalmente asseguradas? Eu creio que não. É claro, suponho que, quando se põe o problema das liberdades públicas ou das liberdades fundamentais da pessoa, há que distinguir a sua enunciação, que é matéria constitucional, e o seu desenvolvimento, o regime do seu exercício, que é matéria da lei ordinária.
Ninguém discute que através da lei ordinária se há-de sempre fazer a organização do regime jurídico das «liberdades públicas» fixadas na Constituïção. Esclarece-se o problema se se pensar no regime repressivo para os abusos dessas liberdades.
Na verdade, todos admitem, ninguém discute e ninguém supõe atingidas as liberdades fundamentais desde que a lei ordinária organize, como processo de defesa dessas liberdades ou dos seus abusos, um processo repressivo. Êsse processo caracteriza-se assim: quando se infringe o regime que delimita o círculo em que pode mover-se a liberdade fundamental, mas só depois de o infringir, é que aparece a reacção social, a reacção do Estado, por intermédio dos seus órgãos judiciais.
Ninguém discute, todos admitem:
1.° Que as liberdades fundamentais consagradas nos textos constitucionais hão-de organizar-se através da lei ordinária;
2.º Que essa organização se faça através de um regime repressivo.
Na nossa Constituïção estão previstas as liberdades fundamentais, está prevista a sua organização através da lei ordinária e está admitida a possibilidade do regime repressivo.
E do regime preventivo? Pode organizar-se, através da lei ordinária, um regime que evite que seja ultrapassado o círculo dentro do qual é razoável que se movam as liberdades públicas? Não estamos já no regime repressivo, mas no preventivo. E neste aspecto? Neste aspecto direi: todos admitem, como elemento de ordem e de defesa do organismo social, a instituïção na lei ordinária de um regime preventivo, desde que êle se não traduza na inutilização do próprio princípio consignado no texto constitucional.
Podemos então assentar em que, de um modo geral, se aceita a instituïção de regimes repressivos e preventivos na organização jurídica das liberdades públicas, desde que com êles não venham a negar-se estas liberdades.
Ora bem. Mas no texto constitucional estão consagradas as liberdades essenciais. Fomos, nesse aspecto, tam longe como os que o foram mais. E está, a propósito dessas liberdades, prevista a possibilidade de, através da lei ordinária, se organizar o seu regime repressiva ou preventivamente.
Á nossa Constituïção, portanto, admite a possibilidade de se estabelecerem os limites dentro dos quais é lícito o movimento das liberdades públicas. E, porque enuncia os princípios em que se exprimem essas liberdades, não admite naturalmente que através da lei ordinária se inutilizem êsses princípios.
Não havia pois que tocar no texto constitucional em matéria de liberdades públicas. Está lá tudo: prevêem-se todas as possibilidades de organizar essas liberdades. Não se admite, já que se consagram essas liberdades e pelo simples facto de se consagrarem, que se inutilizem através da lei ordinária.
Não havia que tocar na Constituïção; pode haver que tocar nas leis ordinárias, mas não há que modificar, sôbre a matéria, a Constituïção. Portanto, nesta parte das liberdades públicas, não tinha a proposta que trazer a consideração da Assemblea qualquer princípio novo que não estivesse já contido na própria Constituïção.
Consideremos ainda nesta parte da Constituïção em que a proposta não tocou um segundo ponto. V. Ex.as sabem — e o excelente parecer da Câmara Corporativa di-lo — que a tendência moderna dos textos constitucionais é, não no sentido de se comporem de disposições que prendam por si mesmas, mas no de marcarem grandes orientações, através de disposições que aparecem como programas de realizações.
A Câmara Corporativa chama-lhes programáticas e é realmente o que são. As Constituïções modernas caminham nessa senda e quási todas batem no direito ao trabalho, no direito ao salário, no direito à assistência...
Preferia não falar de assistência, que nos põe muito perto da miséria e da dor e que nos faz pensar em actos que têm qualquer cousa de exclusivamente unilateral, e não bilateral. Quere dizer: em actos que não podem ser reclamados por quem precisa que sejam praticados, mas são deixados à livre espontaneidade de quem quere praticá-los.
É por isso que prefiro não falar de assistência, e então falarei do direito ao trabalho, do direito ao salário e agora, em vez de assistência, do direito correspondente ao salário quando a pessoa não pode, por qualquer motivo, trabalhar.
É, na verdade, tendência das Constituïções modernas consagrar estes direitos, e eu, para não estar a cansar V. Ex.as com a païsagem dessas Constituïções, vou ler-lhes uma fórmula que naturalmente, por ser a mais actual, traduz o pensamento profundo do momento que passa: é a fórmula contida no artigo 55.°, a), da Carta das Nações Unidas, que acaba de ser votada em S. Francisco. Diz assim: «As Nações Unidas promoverão mais altos estalões de vida, emprêgo para todos e condições de progresso e desenvolvimento económico e social».
A fórmula contém realmente tudo aquilo que nós podemos ver disseminado pela generalidade das Constituições modernas; é sugestiva: então porque não se consagra no texto da Constituïção? Avanço a afirmação: também não é preciso, nesta matéria, alterar a Constituïção Política Portuguesa. Já lá está o mesmo.
E, muito ràpidamente, se V. Ex.as me consentem, vou procurar fazer a demonstração.
Lê-se no n.º 3.° do artigo 6.° da Constituïção, na sua redacção infeliz: «Incumbe ao Estado zelar pela melhoria de condições das classes sociais mais desfavorecidas».
Até aqui está certo. Porém, o resto da redacção é muito infeliz, e está mesmo fora da orientação geral dos princípios que dominam o texto constitucional. No entanto, está cá o princípio: «zelar pela melhoria de condições das classes sociais mais desfavorecidas».
E para quem quisesse falar — e eu não quero — de assistência e informar-se de se no nosso texto constitucional há consignado um princípio que aponte a assistência como um dos direitos públicos dos cidadãos, poderá encontrá-lo consagrado, ainda que por forma indirecta, no § único do artigo 7.°, que diz assim: «Dos mesmos direitos e garantias gozam os estrangeiros residentes em Portugal, se a lei não determinar o contrário. Exceptuam-se os direitos políticos e os direitos públicos que, se traduzam num encargo para o Estado, observando-se, porém, quanto aos últimos, a reciprocidade de vantagens concedidas aos súbditos portugueses por outros Estados».
Entre os direitos públicos que se traduzem num encargo para o Estado está, logo em primeira linha, o direito à assistência.
Atribuírem-se aos estrangeiros em condições de reciprocidade os direitos públicos que se traduzem num encargo para o Estado corresponde a afirmar que dêles gozam — e, portanto, do direito à assistência — os portugueses. Mas eu contínuo.