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DIÁRIO DAS SESSÕES — N.º 186
No artigo 14.°, n.º 3.°, diz-se: «regular os impostos de harmonia com os encargos legítimos da família e promover a adopção do salário familiar».
O artigo 31.°, § 3.°, diz: «O Estado tem o direito e a obrigação de ordenar a vida económica, de modo a conseguir o menor preço e o maior salário compatíveis com a justa remuneração, etc.».
Depois o artigo 41.° diz que o Estado promove e favorece as instituïções de solidariedade, previdência, cooperação e mutualidade.
Ainda o artigo 35.º diz «que a propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação, etc.».
Li a V. Ex.as o texto da Carta das Nações Unidas e acabo de fazer passar diante dos olhos de V. Ex.as algumas disposições constitucionais. Agora pregunto se realmente na Constituïção Portuguesa não está já o bastante para se supor que é programa do Estado Português, resultante dos textos constitucionais, aquilo que aparece condensado na fórmula que li a V. Ex.as e que está contida na alínea a.) do artigo 55.º da Caria das Nações Unidas.
Quere dizer, Sr. Presidente, que ainda nesta matéria não há necessidade, apesar de nestes últimos dez anos muitas cousas se terem passado pelo mundo, de actualizar e, por conseguinte, de tocar no texto constitucional.
Nesta ordem de ideas, olhada a proposta por aquilo em que não toca, parece não haver dúvidas de que ela merece a aprovação na generalidade desta Assemblea.
Consideremos agora a proposta naquilo em que toca e que é a segunda parte da Constituïção: organização do Estado.
A exposição aqui é muito difícil para quem não quere de maneira nenhuma dar a impressão de que está a construir uma página de sebenta. Talvez esta preocupação faça com que ela, a exposição, seja menos clara. Mas também V. Ex.as não carecem naturalmente da clareza que têm de suportar os que estão realmente submetidos ao regime da sebenta.
O Sr. Albino dos Reis: — Mas isso é a rehabilitação da sebenta.
O Orador: — Em dos grandes princípios que dominara a nossa organização constitucional é o que está contido no artigo 112.° da Constituïção Política. Diz êle: «O Govêrno é da exclusiva confiança do Presidente da República e a sua conservação no Poder não depende do destino que tiverem as suas propostas de lei ou de quaisquer votações da Assemblea Nacional».
Portanto, irresponsabilidade do Govêrno perante a Assemblea Nacional. V. Ex.as sabem que êste princípio da irresponsabilidade dos Govêrnos perante as assembleas políticas conduz: primeiro, à chamada separação de poderes; segundo, à não admissibilidade de fiscalização das actividades governamentais pelas assembleas políticas.
É claro que, na verdade, a irresponsabilidade do Govêrno perante a Assemblea conduz naturalmente a que o Govêrno não possa ser fiscalizado pela Assemblea e a haver uma separação nítida de poderes, em que a esfera de um não pode ser invadida pelas actividades do outro.
É, a traços largos, o sistema dos Estados Unidos da América ou, melhor, o sistema da generalidade dos Estados americanos.
Eu não posso entrar em pormenores. Na nossa Constituïção Política fixa-se como princípio — li a V. Ex.ª o artigo 112.° — a irresponsabilidade do Govêrno perante a Assemblea Política e no entanto não se estabelece o princípio da inadmissibilidade de fiscalização da actividade do Govêrno pela Assemblea Nacional nem o da separação de poderes, já que a função legislativa pode ser exercida por um e pela outra.
Parece assim que se não tiram as conseqüências lógicas do princípio que se pôs. Raciocinou-se assim: a separação dos poderes só é susceptível de funcionar se se eliminar a possibilidade de conflitos; mas esta não pode eliminar-se; logo, há que partir dêste facto para a organização constitucional.
E, partindo dêste facto, procuraram-se os meios de fazer desaparecer os estados de conflito. Quais são êsses meios? Um é o direito de dissolução. A simples instituïção do direito, atribuído ao Chefe de Estado, de dissolução da Assemblea aponta a possibilidade da existência de um estado de conflito entre os dois órgãos da soberania, que importa resolver. E então um dos meios de o resolver será a dissolução.
Mas a dissolução, seguida de nova eleição, pode mostrar-se insuficiente para fazer desaparecer o estado de conflito. Era preciso prever outro meio. Para o pôr em evidência preciso, primeiro, mostrar como na nossa Constituïção se concebe o Govêrno.
Aí o Govêrno é concebido, não como um Govêrno à maneira americana, à maneira — como se diz nos livros — presidencialista, mas como os chamados Govêrnos de gabinete, à maneira inglesa.
Na nossa Constituïção, o Govêrno, nas suas relações com a Assemblea, funciona como presidencialista; nas suas relações com o Chefe do Estado funciona como um Govêrno de gabinete, um Govêrno — direi — parlamentar. E como o Govêrno é o responsável efectivo pela actividade da Administração e o Chefe do Estado só é responsável por o manter ou não manter, nós encontramos nesta orgânica e nas possibilidades para o Chefe do Estado de nomear e demitir livremente o Govêrno outra forma de solução dos conflitos que porventura surjam entre a Assemblea e o Govêrno.
Como o Chefe do Estado é livre em o nomear e demitir, uma hipótese de conflito poderá resolver-se pela dissolução da Assemblea ou pela substituïção do Govêrno.
É preciso esclarecer que, quando se resolve pela substituïção do Govêrno, o Chefe do Estado não pode constitucionalmente estar a actuar directamente em conseqüência de uma votação da Assemblea, mas há-de tomar o estado de conflito existente entre esta e o Govêrno como um elemento, um índice a que há-de recorrer para afinal se decidir sôbre a demissão do Govêrno.
Temos, assim, o nosso sistema constitucional perfeitamente desenhado e nêle, dada a diferente posição do Govêrno em face da Assemblea e do Chefe do Estado, é difícil encontrar uma solução que não seja lógica com alguma das pontas daquela diferente posição.
O sistema é presidencialista num aspecto; é parlamentar, ou de gabinete, noutro aspecto.
De maneira que, em estado de conflito, tam lógica é a solução de dissolução como a demissão do Govêrno. É, na verdade, uma orgânica bem encontrada.
Tudo o que acabo de dizer mostra que não há ilogismo entre o princípio da irresponsabilidade do Govêrno perante a Assemblea e o poder de fiscalização que a esta pertence sôbre a actividade do Govêrno.
Agora posso estabelecer esta proposição: é que o que caracteriza essencialmente a Assemblea no nosso regime constitucional é o poder de fiscalização, e não o poder legislativo.
Não cansarei V. Ex.as para lhes demonstrar que a Assemblea não pode prescindir do poder legislativo; mas não deve detê-lo exclusivamente. Se isso sucede ainda, em determinada medida, nos Estados presidencialistas, não acontece nem de direito, nem sobretudo de facto, nos Estados de govêrno de gabinete.