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16 DE JANEIRO DE 1947 259

O Sr. Rocha Paris: - Sr. Presidente: na sessão de 21 de Março da III Legislatura tive a honra de apresentar ao Governo nota de um aviso prévio sobre a situação grave que os municípios atravessam.

Foi, finalmente, marcada para hoje a sua realização, e desse encargo me vou desempenhar, diligenciando sintetizar a minha exposição, para o que me cingirei o mais possível, procurando no entanto desenvolve-la, à nota publicada no Diário das Sessões e que vou reproduzir:

I

O município, organismo natural de formação anterior à do Estado, atravessa uma profunda crise, motivada principalmente:

a) Pelas constantes limitações da sua autonomia funcional;

b) Pelas constantes diminuições da sua capacidade de realizar ou de manter as receitas indispensáveis ao exercício das suas actividades próprias;

c) Pelos constantes aumentos dos seus encargos e obrigações.

II

Parece-nos, portanto, necessária uma revisão do estatuto regulador dos seus direitos e obrigações, no sentido de:

a) Restabelecer, dentro do possível e no seu tradicional significado, as antigas autonomias municipais, condicionando-as à tutela administrativa do Estado;

b) Devolver aos municípios a faculdade de restabelecer receitas que ultimamente lhes tem sido cerceadas e que são indispensáveis à sua acção administrativa, por exemplo:

Receitas provenientes de taxas aplicadas ao consumo de vinhos nos respectivos concelhos;

Receitas provenientes de taxas aplicadas ao consumo de carne nos respectivos concelhos e que actualmente, no todo ou em parte, estão adstritas a novos sectores da administração pública;

c) Reintegrar os municípios na sua função histórica de organismos fomentadores, realizadores e protectoras dos interesses locais, libertando-os, portanto, de encargos e despesas de carácter geral que lhes não devem pertencer, por exemplo:

Comparticipação na construção e conservação dos edifícios destinados aos serviços próprios do Estado (repartições públicas, tribunais, cadeias, etc.) e instalação completa desses serviços, incluindo fornecimento gratuito de água e luz.

E, assim, vou dar início às considerações que me proponho fazer num espírito unicamente de colaboração com o Governo, apontando defeitos que me parece estarem gravemente prejudicando a marcha natural dos negócios municipais.

Parece-me indiscutível que o município não pode ser considerado uma criação da lei, porque esta não decreta nem cria as instituições, mas são estas que se lhe antecedem.

O município deve ser considerado como um organismo natural e histórico anterior à vida e aparecimento do Estado.

Já Alexandre Herculano, referindo-se no município, dizia que o seu estudo, nas suas origens, nas suas modificações como elemento político, devia ter para a sua geração subido valor histórico quando a experiência tivesse demonstrado a necessidade de restaurar esse esquecido, mas indispensável, elemento de toda a boa organização social.

Julgo interessante reproduzir também os depoimentos de alguns historiadores, que servirão para comprovar a importância que sempre os municípios tiveram através dos tempos e dos lugares:

Se avaliarmos e decompusermos os elementos orgânicos de um Estado, em toda a parte encontraremos o município (Savigny).

O município existe em todos os povos, quaisquer que sejam as suas leis e os seus costumes.

Organiza e forma tanto os reinos como as repúblicas.

O município parece que saiu das mãos de Deus.

É a primeira escola onde o cidadão deve aprender os seus deveres políticos e sociais (Tocqueville).

O município não e um ser ideal ou fantástico, mas sim a verdadeira pátria, a que vemos, a que conhecemos em todos os seus pormenores, a que nos faia a todos os sentidos (Sismondi).

O município é a entidade primordial do território.

Quanto vale o município quanto vale a nação (Castadet).

E, assim, vemos que sempre o município foi considerado elemento primordial na orgânica política dos Estados, menos quando se

... basearam nos indivíduos, como células fundamentais da sociedade, fazendo portanto tábua rasa dos agrupamentos naturais de que o ser colectivo se tecia e que, sendo na formação organismos anteriores à vida e aparecimento do Estado, representam forças essenciais, para cuja coordenação e guarda o Estado existe como lógico agente ponderador.

Avoluma-se hoje uma reacção profunda no campo das ciências jurídicas e políticas, reclamando para os municípios o exercício da sua completa soberania.

Reconhece-se, pois, o erro dos critérios administrativos herdados do liberalismo e da corrente centralizadora francesa.

Para esses critérios os municípios não são anuis do que um grau inferior da administração geral do Estado.

Tem-se assim o município como uma exclusiva criação da lei, que ordinariamente o entende como sendo a associação legal de todas as pessoas que residam numa dada circunscrição administrativa, quando, em rigor, o município é uma criação espontânea ou natural de circunstâncias históricas e demográficas (António Sardinha).

Estas considerações tendem a demonstrar o real valor de que se revestiram sempre os municípios através, porém, de algumas vicissitudes que, por vezes, os transformaram quase em «corpos sem acção própria, simulacros de administração económica, fantasmas irrisórios do poder municipal», como em 1832 dizia a Câmara Municipal de Lisboa, protestando contra a lei n.º 23 de 16 de Maio, e que, pelo seu carácter extremamente centralizador, feria profundamente os sentimentos tradicionais da autonomia municipal.

Os tempos, porém, mudaram, e hoje município pode considerar-se em Portugal como sinónimo de concelho.

Seja como for, o que é indiscutível é que os municípios são organismos naturais, formando a base efectiva de qualquer Estado bem constituído.