12 DE MARÇO DE 1948 317
neiro e sobre o qual a Câmara Corporativa chegou a emitir o seu parecer; quando as palavras tranquilizadoras de S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho haviam já reforçado o clamoroso coro dos que proclamavam não ser ainda oportuno alterar a legislação em vigor sobre arrendamentos de prédios urbanos, surge inopinadamente, com grande espanto da quase totalidade da população portuguesa a quem o facto interessa, a publicação da proposta de lei 11.º 202, acerca de questões conexas com o problema da habitação.
A Associação dos Inquilinos Lisbonenses, sociedade cooperativa de responsabilidade limitada, prestou-lhe imediatamente a sua atenção mais viva, estudando-a com verdadeiro espírito de imparcialidade. Interpretando o sentir, não apenas dos seus associados, mas também, pode dizê-lo, dos inquilinos portugueses em geral, lamentou a inesperada ressurreição das inquietações, dúvidas e receios que já no ano passado lhe ditaram o apelo que dirigiu aos Exmos. Srs. Presidente e Deputados da Assembleia Nacional, dispondo-se a encarar os graves problemas mais uma vez suscitados e sobre os quais, com a devida vénia, não pode dispensar-se de trazer, perante VV. Ex.ªs, as considerações que entende serem úteis, como contributo para a sua mais conveniente solução, convencida de que deste modo cumpre um dever que lhe é imposto pela legitimidade dos interesses cuja defesa constitui a razão fundamental da sua vida.
Assim, pois, ao abrigo do artigo 8.º, n.º 18.º, da Constituição Política da República Portuguesa, a Associação dos Inquilinos Lisbonenses tem a honra de formular perante VV. Ex.ªs a representação que lhe parece justa, necessária e própria sobre a proposta de lei n.º 202, cujo conteúdo sobremaneira interesssa aos seus associados.
2. Pela leitura do relatório que a precede fica-se com a animadora impressão de que a reforma projectada reflectirá o alto escopo ai claramente manifestado, de que a sua função será principalmente a de
... opor um dique, em nome das necessidades sociais de habitação, aos interesses individuais dos proprietários.
Surpreende-se no mesmo relatório o conceito de que importa tanto elevar até ao quantitativo justo as rendas antigas como reduzir ao razoável, de acordo com as condições económicas da maior parte da população, as elevadas rendas dos arrendamentos recentes, «sempre que o interesse geral da habitação o consinta».
E, quanto à oportunidade duma reforma da regulamentação jurídica do contrato de arrendamento, depreende-se a tese de que ela só deve verificar-se quando houver estabilidade relativa dos factores que condicionam o problema da habitação, uma vez que aã estruturação definitiva do instituto do inquilinato menos cria do que supõe essa relativa estabilidade D, sendo, por isso, igualmente verdadeiro que a simples alteração das principais normas reguladoras de tal instituto supõe, ao menos, a existência de condições mínimas para que o problema da habitação não se torne ainda mais complicado e angustioso.
3. Entrando, porém, na apreciação das respectivas bases, pode concluir-se que algumas delas, sobretudo as que especificadamente se referem â fixação e actualização das rendas, nem sempre reflectem, e até por vezes negam, os intuitos que se traduzem naqueles justos e salutares conceitos.
Mais de uma vez o Governo da Nação tem reconhecido que a retribuição do trabalho, designadamente quanto u numerosa classe dos servidores do Estado, ainda não atingiu o limite necessário para que um justo equilíbrio se estabeleça entre ela e o custo da vida, agravado por fenómenos a cujas repercussões inelutàvelmente tivemos de nos submeter.
A declarada impossibilidade da criação imediata desse almejado equilíbrio tem sido reconhecida, com verdadeiro espírito de sacrifício, pelos que vêm suportando, amparados apenas, ou principalmente, nos proventos do trabalho, o peso dos factores que condicionam o seu nível económico.
Justo é que também continuem dispostos a idêntico ou até maior espírito de abnegação os que, no todo ou em parte, contam com rendimentos da propriedade privada como meios de vida de fácil aquisição, mormente quando constituídos pelas rendas de prédios urbanos.
Ora a elevação de rendas prevista na proposta de lei n.º 202 corresponderá à supressão das razões de sacrifício que os senhorios podem invocar, com agravamento das que já são suportadas pelos inquilinos.
Com efeito, a determinação do rendimento colectável ilíquido dos prédios depende do valor absoluto destes, visto que as respectivas avaliações assentam em elementos e factores que constituem as bases reais desse valor e que na base XXXVI da proposta são enumerados.
A actualização das rendas de contratos anteriores a 1 de Janeiro de 1943 corresponderá ao duodécimo do referido rendimento colectável.
O senhorio obterá, pois, à custa de um acréscimo dos encargos sofridos pelo inquilino o rendimento a que normalmente poderia aspirar, e que muitas vezes corresponde a uma elevada taxa de juro sobre o capital investido na propriedade.
Assim, a protecção dos interesses individuais daqueles sobrelevará a que deve ser dispensada a estes em nome das necessidades sociais da habitação.
E há-de verificar-se, na grande maioria dos casos, que a elevação das rendas imporá aos inquilinos um encargo superior à verba que nos orçamentos privados pode ser destinada a essa despesa inevitável.
Considera-se geralmente que ela não deve ultrapassai a sexta parte da receita - o próprio Estado tem adoptado esse critério, por exemplo quando no § único do artigo 87.º do Estatuto Judiciário (decreto-lei n.º 33:547) determina que as rendas a pagar pelos magistrados relativamente às casas que os municípios são obrigados a fornecer-lhes nunca poderão exceder um sexto dos, vencimentos orçamentais daqueles.
No entanto, se vier a ser decretado o limite de elevação de renda previsto na base XXIX, poucos serão os inquilinos de classes modestas - as mais numerosas - que não tenham de dispor de muito mais de um sexto dos seus proventos para o pagamento dessa despesa de primeira necessidade. E, por exemplo, o caso de um funcionário público, primeiro-oficial, que paga actualmente 333$ de renda mensal pelo rés-do-chão onde habita, cujo duodécimo do rendimento colectável é de
As condições económicas da maior parte da população estarão, pois, em desacordo com o aumento estabelecido, o que importa negação do critério a tal respeito preconizado no relatório da proposta.
Já o reconheceu o Deputado Sr. Dr. Sá Carneiro, prevendo no seu aludido projecto de lei a criação de um fundo especial destinado a custear os excessos da renda com que fossem onerados os inquilinos carecidos de meios.
Este cruciante aspecto da realidade não foi, porém, encarado na actual proposta de lei, na qual também se não atendeu a que muitos milhares de inquilinos vivem em casas desprovidas das mais rudimentares condições de higiene, por não poderem suportar as rendas mais caras de melhores habitações.