27 DE ABRIL DE 1948 561
E nestas, efectivamente, a constituição do direito de superfície pode ser feita não só pelo Estado, autarquias locais e pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, mas também por simples particulares.
Em Portugal, todavia, as coisas passam-se de modo diverso. É minguada e não deixou rastos salientes a tradição histórica deste instituto jurídico. O direito positivo actual desconhece-o praticamente, ou, quando muito, permite-se ter dele uma noção imprecisa e vaga. Não está definido com rigor e é impossível encontrarem-se-lhe perfeitamente delimitados os contornos, de modo a aparecer-nos como figura jurídica típica entre as demais formas de propriedade imperfeita.
For sua vez, também a doutrina e a jurisprudência, entre nós, não têm trazido o direito de superfície para a luz do estudo e da crítica.
Nestas condições, e dada a incompreensão ou falta de simpatia, porventura injustificadas, com que se olha ainda para a propriedade imperfeita, bem avisado andou o Governo, a meu ver, em instituir o direito de superfície, limitando-lhe os fins à construção de prédios urbanos e atribuindo o poder da sua constituição só ao Estado, autarquias locais e pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.
For todo o exposto, a Câmara Corporativa, no seu bem elaborado parecer, chega a mostrar receio de ver as bases da proposta governamental reduzidas à definição da estrutura deste novo instituto jurídico e julgou necessário descer-se desde já à determinação dos princípios que naturalmente hão-de decorrer da aplicação do direito de superfície e deverão regular o seu exercício ou funcionamento.
Quer dizer: indo talvez para além dos elementos essenciais definidores do direito de superfície, que tecnicamente seria o bastante numa proposta de lei, pretendeu enunciar as próprias linhas gerais da sua regulamentação.
Sendo assim, o aditamento proposto pelo Sr. Dr. Cunha Gonçalves pode representar algum risco. Eu não digo categoricamente que o representa; receio que o venha a representar.
Na adopção de uma nova figura jurídica e sem tradição marcada no nosso direito é vantajoso caminhar-se com prudência. Acresce que, regulando o exercício do direito de superfície, as bases propostas pela Câmara Corporativa foram redigidas exclusivamente com vista à constituição deste direito só pelo Estado, autarquias locais e pessoas colectivas de utilidade pública administrativa. Como poderão essas bases ajustar-se ao aditamento proposto pelo Sr. Dr. Cunha Gonçalves?
O problema demanda reflexão e exame, impossíveis de fazer neste momento. Mas que ele é de pôr e colhe não pode haver dúvidas. Mostra-o um rápido olhar sobre a própria base XVII-A, agora em discussão. Nela se diz que, em regra, a designação do superficiário se fará em hasta pública e que só em casos especiais esta pode ser dispensada. Ora, como compreender a obrigatoriedade da hasta pública no direito de superfície constituído por simples particulares?!
Em resumo, Sr. Presidente: não me repugna, em princípio, aceitar... o princípio advogado pelo Sr. Deputado Cunha Gonçalves; mas creio haver sérios motivos para se recear introduzi-lo na actual proposta de lei. Melhor seria voltar ao problema noutra oportunidade ou convidar o Governo a examiná-lo quando a experiência desta proposta começar a dar os seus frutos.
Há-de no entanto dizer-se, em homenagem à verdade, que a emenda proposta pelo nosso ilustre colega Sr. Deputado Cunha Gonçalves tem um alto merecimento: o de evidenciar que, embora com os limites apontados, bem andou o Governo em prever a instituição do direito de superfície, tão bem que se pretenderia alargar já a faculdade da sua constituição aos simples particulares.
É a confissão de que o novo instituto não pode ser olhado como um simples prurido de inovação, mas deve ser tido como prometedora esperança, todos nós desejando vê-lo amanhã tornado fecunda realidade.
Tenho dito.
O Sr. Sá Carneiro: - Permito-me divergir do Sr. Dr. Soares da Fonseca e dou o meu voto à alteração proposta pelo Sr. Dr. Cunha Gonçalves.
A meu ver, os particulares também devem poder constituir o direito de superfície, não sendo de aplaudir a limitação sugerida pela Câmara Corporativa no sentido de só ao Estado, às autarquias locais e às pessoas colectivas de utilidade pública administrativa se reservar o estabelecimento do mesmo direito.
Na proposta do Governo, esse exclusivismo não era tão vincado, pois, embora se facultasse àquelas entidades a formação do mesmo direito em terrenos próprios, não se excluía expressamente o direito de superfície em terrenos de proprietários individuais.
Desse modo, na regulamentação da lei, 6 Governo poderia, como é justo, ampliar o direito de superfície a terr.enos de particulares, o que lhe será vedado quando se vote a base XVII-A.
No nosso Código Civil há aflorações do aludido direito, como se vê, por exemplo, do artigo 2308.º, que, ao permitir ao dono do terreno onde existam árvores alheias a aquisição delas, reconhece a propriedade do superficiário sobre essas árvores.
Do mesmo artigo se infere que a sementeira ou plantação pode resultar de um contrato entre o dono do terreno e o das árvores, embora a obrigação de conservá-las não possa ser assumida por período excedente a trinta anos.
Isto é um verdadeiro direito de superfície, que a lei belga de 10 de Janeiro de 1924 define como o direito real, que consiste em ter plantações, obras ou construções em terrenos de outrem. E na doutrina estrangeira considera-se superficiário o dono de árvores existentes nos próprios terrenos públicos.
O Código Civil alemão também regulava esse direito nos artigos 1012.º a 1017.º, sem lhe dar a denominação que veio a ser consagrada na doutrina e na legislação posterior.
O Sr. Dr. Cunha Gonçalves citoudiversos casos em que o direito de superfície é praticado, como o de concessões de terrenos para jazigos feitas pelas câmaras municipais e as licenças concedidas pela Administração Geral do Porto de Lisboa para a construção de armazéns ou barracas destinados à recolha de mercadorias nos terrenos da sua jurisdição.
Os juristas estrangeiros apontam como direito de superfície incompleto o arrendamento com permissão de construir - hipótese a que me referi na discussão na generalidade.
Pensei em apresentar uma proposta de nova base, que pressupunha a aprovação da emenda do Sr. Dr. Cunha Gonçalves, considerando direito de superfície o arrendamento a longo prazo de chãos para edificar, quando o proprietário se obrigue a pagar as benfeitorias ao arrendatário, se não quisesse renovar o arrendamento.
Todavia, como a comissão eventual não aceitou essa ideia, limito-me a expô-la, no convencimento de que, ainda que a alteração do Sr. Dr. Cunha Gonçalves não seja votada, numa reforma da nova lei civil se estabelecerá o direito de superfície com a latitude que o mesmo tem nas legislações estrangeiras.
A importância prática da superfície é cada vez maior, visto que facilita a quem não dispõe de capital para compra de terreno a construção de prédios que, de outro modo, não seriam levantados.