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11 DE JANEIRO DE 1951 221

recordado o exaltado o que merece perdurar como afirmação de amor a Deus e à Pátria.
Quando assim se procede em holocausto aos princípios de unidade nacional que marcam a linha de horizonte moral da nossa vida política, alegrando-nos com a pequena parcela de ouro que foi possível separar da imensa ganga de algumas obras, ninguém certamente estranhará que ou, na passagem do 26.º aniversário da morte de António Sardinha, levante a voz nesta Assembleia Nacional para rememorar a figura gentil de um dos melhores portugueses da nossa época.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sem pretender contrapô-lo a ninguém, pois isso seria manchar a sua memória e trair a minha intenção, eu desejo recordá-lo como precursor do ressurgimento de Portugal, delineador esclarecido o infatigável dos princípios da reconstrução moral da Nação e arauto de "uma outra manhã de Ourique - que ele profetizou -,tão gloriosa como a primeira".
É que na obra o na acção de António Sardinha quase tudo é ouro puro o infinitamente pequena a ganga em relação com as ideias e os sentimentos que nos animam. Por isso, António Sardinha é um dos mortos que mais entranhadamente vive no meio de nós.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Outros poderão falar dele com mais autoridade e saber, mas não ficaria de bem com a minha consciência se não aproveitasse esta oportunidade singular para prestar o meu testemunho de apreço, embora apagado e desataviado, ao mestre o amigo que Deus me concedeu conhecer, admirar e estimar.
Sr. Presidente: no 25.º ano da gloriosa Revolução de 28 de Maio muitos dos novos que hoje vivem o clima moral de ordem o paz do Estado Novo, ao ponto de anelar por mais e melhor, mal podem aperceber-se do que foi na nossa perturbada mocidade a presença de António Sardinha.
Vivíamos então, em pleno regime de anarquia mental o política, as trágicas consequências do que já Antero classificara:

Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obus.

Tudo parecia irremediavelmente perdido. Perante a desilusão, o desalento e o desespero da geração de nossos pais, a Nação marchava à deriva, como navio no mar alto encapelado, sem piloto, sem bússola nem leme. Se a fé em Deus nos tinha sido acalentada e ateada pela piedade resignada e o heróico exemplo de nossas mães o sentimento inato da Pátria, que em nós tremulava como luz prestes a apagar-se, não encontrava uma, ideia para se estruturar, reavivar e progredir.
Que poderíamos ser, se tudo o que tinha fugazmente entusiasmado as gerações anteriores agonizava ante os nossos olhos em espectáculos pavorosos de destruição e ódio ?
Seríamos anarquistas à moda de Bakunine, socialistas marxistas ou niilistas segundo o modelo de Kropotkine. Sim, nós poderíamos ser tudo menos pactuar ou aderir ao que então existia torpemente, porque nada disso estancaria a sede de infinito e a angústia desgarradora da nossa juventude, tão, cedo atirada para as preocupações e lutas políticas.
E que líamos, santo Deus? Zola, Faure, Shopenhauer, Kropotkine, livros com berrantes capas vermelhas e prefácios aliciantes - tudo o que envenenava a alma, desvairava a inteligência e amotinava os sentimentos. Conhecíamos de cor versos de Baudelaire e o Verlaine, não o da Sagesse, mas o dos Poèmes saturniens. Discutíamos utopicamente sem rumo e sentíamos tumultuosamente ...
Foi então quando António Sardinha se abeirou de muitos de nós e começou a falar-nos, numa nova e ardente linguagem, das raízes profundas da nossa Pátria, "das próprias razões de ser tanto territoriais como morais de Portugal", da necessidade do voltar "à senda esquecida, da tradição" e nos mostrou que qualquer coisa de estranho cobria a verdadeira essência e a substância viva da Nação, qualquer coisa que devíamos afastar o extirpar para se redescobrir a ideia secular que, repensada segundo as circunstâncias da nossa época, nos ajudaria a reconstruir institucionalmente a Casa Lusitana e a retomar o caminho para uma nova grandeza futura.
E nunca mais até á sua morte deixou de continuar o maravilhoso diálogo em que o Mestre, solícito, como amorável jardineiro, cuidou das belas plantas que semeou no coração da nossa mocidade.
Nessa incansável faina de semeador de ideias nobres e sentimentos elevados, cultivou em nós o gosto de ler os melhores livros da literatura histórica portuguesa, um Herculano, Gama Barros, Alberto Sampaio, etc., e, em muitos outros escritores contemporâneos, ajudou-nos a separar o trigo do joio, por exemplo a preferir A Ilustre Casa de Ramires, de Eça, ao Crime do Padre Amaro, o Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, à negativista História de Portugal. Ele próprio nos acompanhava às livrarias para nos aconselhar as obras que devíamos comprar ou encomendar, e desse modo conhecemos os críticos da Revolução Francesa, Bonald, Taine, Le Play, Tour du Pin La Charce, Maurras, Bainville, Dom Besse e tantos outros.
E incitou-nos a escrever, comunicando-nos a ânsia de proselitismo que o arrebatava, e também a espalhar a nova doutrina aos nossos condiscípulos e amigos o pelos jornais de província onde podíamos colaborar. E assim, dia após dia, em leituras, conversas e discussões, até que a publicação do primeiro artigo de um de nós no diário de então, A Monarquia, com elogiosa referência, significava que fôramos armados cavaleiros da grei para a reconquista de Portugal.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - De facto, perante Deus e os homens, indiferentes às ironias, sarcasmos e insultos dos adversários desse tempo, nós tínhamos feito a nossa profissão de fé.
Foi assim Sardinha para muitos de nós. Acendeu no nosso coração um fogo que nunca mais se extingue e que, pelo contrário, segundo a admirável definição de amor de San Juan de la Cruz, "arde com desejo de arder mais". Fogo que se tornou labareda e iluminou os que viviam à nossa volta e se propagou à terra portuguesa.
Éramos poucos então; mas que nos importava o número, se estávamos misticamente convencidos de que tínhamos razão? Rememorando essa heróica velada de armas, António Sardinha escreveu em 1923: "pegámos no arado, lançando na bordado lusitana um sulco tão profundo que já não há vento daninho que o possa apagar".
Sr. Presidente: eu pretendi recordar, embora a traços largos, o ambiente moral e político da época em que começámos a descobrir a realidade histórica de Portugal, para tentar mostrar o que representou para a minha geração a figura tutelar de António Sardinha.
Não posso ir muito além nesta ligeira nota comemorativa. Contudo, não queria deixar de destacar, também de forma sucinta, alguns dos aspectos da sua doutrina de reconstituição nacional que mais vincadamente formaram o nosso carácter político.