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224 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 65

E tanto assim que começo precisamente por dar razão, em grande parte, ao Sr. Deputado Carlos Moreira nas suas referências ao regicídio.
Quando mataram D. Carlos tinha eu 15 anos e era republicano ... Era e sou, porque não foi a República que o matou.
É, portanto, como republicano que arrisco esta opinião, meramente, mas convictamente, pessoal: D. Carlos foi, porventura, em toda a dinastia de Bragança, sobretudo a partir dum dado momento da sua vida, o rei de Portugal mais digno deste nome, pela expressão varonil das suas atitudes, pelo seu portuguesismo bravo e castiço, pela sua simpatia irradiante e pela sua bondade imanente. Mesmo que assim não fosse, todo o acto criminoso repugna ao coração dum trovador, dum idealista. E, contudo, o que Junqueiro disse e escreveu sobre o regicídio é inacreditável, desconcertante!
O poeta da Morte de D. João era o ídolo da mocidade do meu tempo; recitávamos uns aos outros os seus versos, electrizantes como toques de clarim e rufos de tambor. E todavia a retórica piramidal e capciosa que ele desenvolveu sobre os assassinatos atirou tudo a terra. Foi como se ouvíssemos o fragor duma ilusão que desaba; foi como se víssemos tombar do pedestal da nossa idolatria um deus imarcescível ante os nossos olhos devaneadores de adolescentes, atónitos de assombro.
E no entanto o poeta tem desculpa, porque era um poeta ... O que ele escreveu nessa altura não se deve considerar como afirmações de um facínora, mas simplesmente como divagações dum lunático. Não aprovou o crime nem o condenou, procurando apenas explicá-lo com a lógica incongruente dum nefelibata.
Junqueiro errou, é certo, mas todos nós erramos, sobretudo quando transportados ao ambiente febril em que ele viveu, propício a todas as mórbidas concepções.
Todos nós erramos; errou talvez o Sr. Deputado Carlos Moreira nas conclusões a que chegou.

O Sr. Carlos Moreira: - V. Ex.ª o demonstrará.

O Orador: - Erro eu, porventura, nesta apagada resposta que lhe dou; erram também - e esses lamentavelmente, miseravelmente- homens que, num dado momento histórico, empunham nas suas mãos inconsequentes os destinos do Mundo, adiando indefinidamente as resoluções salvadoras, até perderem por completo o domínio da situação.
Entremos agora na matéria de discordância: diz o nosso ilustre colega que Junqueiro a é incitador à revolução social da desordem» ; e transcreve, em apoio desta asserção, a primeira estância de uma das mais vigorosas composições do poeta:

Faminto, nu, sem mãe, sem leito,
Roubei um pão.
Quem vai além de farda e de grã-cruz ao peito?
Um ladrão!

Esta farda - é bom frisar - não diz respeito ao uniforme militar. Cá na tropa quem as faz paga-as; e muitas vezes até se pagam as que os outros fazem. Haja em vista, por exemplo, em grande escala, a guerra da Coreia. Porque, em pequena escala, os exemplos apontam-se a cada passo.
Mas o Sr. Deputado Carlos Moreira não disse o resto Já poesia; eu continuo, para agravar ainda mais a situação do poeta:

Todos os crimes da desgraça
Em mim reúno.
Quem vai além tirado a parelhas de raça?
Um gatuno!
Pela miséria crapulosa
Eu fui traído.
Que esplêndido palácio em festa! Quem o goza?
Um bandido!

Convém que se diga, nesta altura, que a poesia se intitula: Falam os condenados. Diante disto, invoco em defesa de Junqueiro todos os santos da corte do Céu, desde S. Tomé a Santo Afonso de Ligório; todos os doutores da Igreja, desde Leão XIII ao cardeal Manning, sem falar de Cristo. E nenhum deles contradiz o pensamento que preside a esta admirável síntese de Junqueiro, que não é mais revolucionária nem mais subversiva do que o vibrante slogan de Salazar, a mais formosa epígrafe da nossa causa:
«Enquanto houver em Portugal um lar sem pão, a revolução continuai». Porque a verdade é esta: só tem direito moral à riqueza quem a souber adquirir com dignidade e aplicar com galhardia. Só tem direito moral à riqueza quem fizer dela um instrumento do Bem.
Não é no apelo dolorido do vate apaixonado que está o incitamento à revolução social da desordem. Pelo contrário, os seus gritos de protesto e os seus gemidos de dor podem até contribuir para deter ou desviar a marcha da torrente.
O incitamento à revolução social da desordem, em todo este mundo de Cristo, reside essencialmente na crápula dos costumes e na inversão dos direitos, a coberto da injustiça impune e soberana.
E, se queremos salvar a nossa fé e o nosso ideal, é sobre este objectivo e nesta direcção que temos de montar o ataque.
Junqueiro «colérico, rebelde» ? Talvez. Mas Junqueiro anárquico-comunista, porventura? Não me parece.
Arquimedes disse um dia: «Dai-me uma alavanca e um ponto fixo no espaço e eu levantarei a Terra». E eu direi, por minha vez: dai-me a lira de Junqueiro e a hermenêutica de um apóstolo e eu levantarei uma cruzada anticomunista.
Mas prosseguindo: termina a apóstrofe do poeta com uma estância que eu já tinha citado a propósito da Lei de Meios, procurando justificá-la, e que o nosso colega citou também, quero crer que por mero acaso:

Viola, seduz, furta, assassina,
Milhão, és rei!
Que prostituta está cantando àquela esquina?
A Lei!

Ora o Sr. Deputado Carlos Moreira, que é um homem de leis, sabe melhor do que eu que só é digno de julgar quem tiver a consciência da sua missão, quem possuir autoridade e coragem moral, capacidade e independência mental para defender a lei contra toda a especulação jurídica, adaptando-a exclusivamente ao fim moralizador para que foi criada. E, quando assim não sucede, o julgador, ou quem o designou para julgar, traiu a sua missão. Porque os tribunais, Sr. Presidente -e V. Ex.ª com o seu exemplo de alto magistrado o confirma-, os tribunais são templos da Justiça, não são prostíbulos do Direito.
Mais adiante cita o nosso colega uma passagem da Morte de D. João, endossando à responsabilidade do poeta palavras que este coloca na boca do seu protagonista, diante de um crucifixo. Mas não se pode responsabilizar Junqueiro pelos sarcasmos de um «canalha gentil», que se arrasta, bêbedo e sifilítico, entre as ruínas da sua alma putrefacta, na última fase do cinismo e da degradação moral; esse torpe D. João. com o seu cortejo de donzelas desvairadas, o sedutor irresistível, o galã rafiné, o charmeur ou o rufia, que Junqueiro matou como se mata um lobo, em defesa da sociedade ultrajada.