230 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 65
vezes é o próprio texto legal que é deficiente, forçando os magistrados a proferir decisões com as quais, de jurie condindo, eles talvez sejam os primeiros a não estar de acordo.
De uma forma ou de outra, a verdade, já apontada pelo Prof. Doutor José Alberto dos Reis, é que o «Supremo tem sido infeliz na enunciação de alguns assentos» (23).
Porque me vou ocupar apenas desses, que criticarei, era preciso dizer isto, para não se cuidar que esqueço o muitíssimo que haveria que louvar.
O primeiro assento que, pela importância da doutrina fixada, merece o maior reparo é o de 8 de Maio de 1928 - um dos tais só tirado com um voto de maioria -, onde se julgou que a entrega ao credor de uma letra aceite pelo devedor, à conta da sua dívida, representa uma novação, ou seja a extinção da dívida antiga e a criação de uma dívida nova, que é a representada pela letra.
Sem falar em outras graves consequências de ordem jurídica que esta decisão logicamente importa, salientarei que, por ela, se um comerciante tiver um crédito privilegiado - por exemplo, sobre um navio, por falta de entrega de mercadorias carregadas - e depois receber do seu devedor, em representação da dívida, uma letra por este aceite, perderá o privilégio de que gozava, porque a emissão da letra extingue a dívida antiga e, consequentemente, a sua garantia. Logo, se o devedor depois não pagar a letra, o credor passará a ser um credor comum, como outro qualquer.
Esta tese de que a emissão das letras produz novação estava, antes do assento, há muito condenada pela quase unanimidade da doutrina em Portugal.
Não admira, por isso, que a decisão do Supremo, tirada por um único voto de maioria, fosse recebida com um coro geral de reprovação.
«Infeliz assento, doutrina inadmissível», assim se exprimiu a Revista de Legislação e Jurisprudência (24).
O assento «esquece toda a teoria jurídica das letras» ... «parece-nos que terá vida fugaz, se o legislador sensatamente não o inutilizar com um preceito interpretativo», comentou o Sr. Dr. Sá Carneiro (25).
«Um verdadeiro desafio à jurisprudência de todos os países e ao consenso geral da doutrina», assim se lhe refere o Sr. Dr. Gonçalves Dias, na sua monumental obra Da letra e da livrança (26).
«Detestável acórdão, que tem de ser urgentemente expurgado da nossa jurisprudência para prestígio da magistratura portuguesa», nestes termos vibrantes o aprecia o Sr. Dr. Cunha Gonçalves (27).
Combatido igualmente pelo Sr. Dr. José Alberto dos lieis (28), pelo Prof. Doutor Mário de Figueiredo (29), pela Gazeta Judiciária (30), pelo Dr. Humberto Pelágio (31), contrariado mesmo pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça em decisões posteriores (32), a verdade é que a lamentável decisão continua de pé.
Continua de pé é como quem diz.
Houve quem sustentasse, como a Gazeta da Relação de Lisboa (33), que este assento não tinha força obrigatória, por ter sido proferido indevidamente num caso em que não havia oposição de acórdãos; como há quem sustente, com fundadas razões, que o assento é inaplicável às letras no regime da. lei uniforme (34).
De qualquer modo, trata-se de questões discutíveis.
Para evitar mal-entendidos, o melhor remédio é publicar um texto legal consagrando doutrina oposta à do assento de 8 de Maio de 1928, que foi proferido - se a expressão me é permitida - contra a consciência jurídica da Nação.
Sr. Presidente: outro assento que reputo gravíssimo nas suas consequências, que felizmente ainda não foram exploradas até onde o poderão ser, é o de 26 de Janeiro de 1937, referente às acções intentadas pelas vítimas de desastres de viação, nos termos do Código da Estrada (35).
Discutia-se até aí dentro de que prazo essas acções deviam ser propostas: um ano, por aplicação do artigo 539.º, n.º 6.º, do Código Civil? Cinco anos, nos termos do artigo 543.º, n.º 3.º? Trinta anos, nos termos gerais? O assento assentou no pior: trinta anos!
Um desastre de viação verifica-se, por assim dizer, instantaneamente. Mesmo quem o presencia muita vez não sabe explicar como as coisas ocorreram, porque não estava preparado para o que se ia desenrolar. Contar como as coisas se passaram um ano depois já demanda uma memória muito razoável. Mas poder explicar num tribunal se o motorista ia devagar ou depressa, se ia junto do passeio ou pelo meio da rua, se buzinou ou não buzinou, «e o peão olhou ou não antes de atravessar - tudo isto mais de trinta anos depois de o desastre se ter dado! -, é, sem dúvida alguma, um absurdo inadmissível.
Em trinta anos (desapareceu o automóvel com que se deu o desastre, em muitos casos terão desaparecido os protagonistas, as testemunhas e até, nesta febre de renovação que se regista por toldo o País, ,e especialmente em Lisboa, poderão ter desaparecido a estrada ou rua onde o acidente ocorreu, englobados em qualquer plano rodoviário ou de urbanização...
Mas tudo isto, que já torna absurda a possibilidade de se estar, a trinta anos de distância, a esquadrinhar em quantos metros o automóvel parou ou quantos centímetros a vítima distava do passeio, tudo isto ainda não é nada.
O pior é que os doutos conselheiros que tiraram o assento mão atentaram, ao proferi-lo, em que nas acções de responsabilidade civil por acidentes de viação o ónus da prova está invertido.
Quer isto dizer, em linguagem comum, que a negra geral de todas as acções é que a quem alega é que incumbe provar.
Por conseguinte, quanto mais tempo um autor demorar tem recorrer a juízo, tanto pior para ele, porque mais dificuldade terá - cinco, dez, quinze, vinte anos depois dos factos ocorridos de fazer a demonstração daquilo que pretende.
Por isso nenhum mal advém ide haver o prazo geral de trinta anos para propor qualquer acção, visto que o interesse dos autores é o primeiro a forçá-los a virem a juízo o mais cedo possível.
Há, contudo, dois únicos sectores ide relações jurídicas onde se faz excepção a esta regra: em matéria de acidentes de trabalho e em matéria de acidentes ide viação.
Nestes dois campos o autor tem apenas, a bem dizer, de provar a materialidade do desastre, o que a todo o tempo é demonstrável.
Os réus - ou seja os patrões em acidentes de trabalho, os automobilistas em acidentes de viação, ou os respectivos seguradores é que, se quiserem ser absolvidos, deverão provar que se verifica uma causa exoneradora da sua responsabilidade.
Por outras palavras: não saio ,as vítimas que têm de provar que os acidentes! ocorreram por culpa dos patrões ou dos condutores dos veículos; os patrões é que terão de provar que o desastre foi devido, por exemplo, a um acto temerário do operário, e os automobilistas que o atropelamento foi devido a culpa ida própria vítima.
Há, pois, como disse acima, uma inversão do ónus da prova.
Daqui se conclui que, ao contrário do que acontece em toldos os restantes casos, mestas hipóteses especialíssimas de acidentes de trabalho e de viação, quanto