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718 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 90

O Sr. Pinto Barriga: Sr. Presidente: compreender e resolver os problemas sociais da hora presente é para o europeu a condição da sua própria liberdade. Um regime não se define apenas politicamente por uma boa administração financeira, tem necessàriamente de estruturar-se económica e politicamente, para a si próprio se definir, para se institucionalizar, e sobreviver.
O corporativismo português - dou um pouco como definição caricatural - tem evoluído e oscilado entre um liberalismo eufórico de lucros e um estatismo, esponjando e nacionalizando prejuízos e burocratizando iniciativas. Não foi essa a ideia basilar de Salazar, que queria a economia lusitana livre na medida em que aproveitasse iniciativas fecundas e corporativizada na proporção em que o esforço de conjunto valorizasse possibilidades ou limasse dificuldades.
Salazar conseguiu alicerçar as finanças públicas em bases de tal consistência que passaram a ser apontadas lá fora como um modelo de administração financeira.
Para os técnicos estrangeiros foi motivo de espantosa admiração verificarem que as parafinanças viviam à margem da orçamentologia portuguesa, desorçamentadas, descontabilizadas e tecnicamente descontroladas.
Nos países de má administração financeira é que as parafinanças vivem fora das leis normais da orçamentologia, para assim gozarem, autonomizadas, melhor crédito no público. Mas num país como o nosso, de finanças sãs, não era de prever que assim pudesse acontecer, e menos ainda continuar a suceder.
Neste aviso prévio focarei e localizarei a política social do regime. Verificarei, sem ambages, se essa segurança social se realizou e em que termos, ou se a previdência social se transformou numa «chrematofagia», dando apenas ao proletário português umas migalhas de justiça social.
Quem é que não estimava nesta Casa, intelectual e moralmente, o Sr. Dr. Soares da Fonseca? Quem não previu a falta que ia fazer nos trabalhos desta Assembleia, pela argúcia, brilho e bom senso das suas intervenções? Antevemos quanto o País ganhou pela sua ascensão às cadeiras do Poder, que lhe permitiria desenvolver as suas raras qualidades de energia e de discernimento político.
Nesta minha intervenção sinto S. Ex.ª presente, pressinto mesmo que me compreendeu; eu não o vou atacar ..., vou atacar um problema.
Não subi a esta tribuna para criticar depreciativa e sistematicamente. Vim primeiro lembrar e vincar os nomes dos Srs. Drs. Teotónio Pereira, Rebelo de Andrade, Trigo de Negreiros, Castro Fernandes e Mota Veiga no que deixaram espalhado em obras um pouco dos seus sonhos; não me esquecerei de todos aqueles que no Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, modesta e honestamente, deram a farta contribuição da sua desinteressada dedicação e, finalmente, não deixarei de me referir ao contributo valioso de muitos carolas espalhados pelo serviço da previdência social.
Podia vir carregado de números, mas não os encontrei em publicações oficiais. Os serviços da previdência vivem num provisório que os impede de se estatizarem em minúcia. Poderia trazer números globais, quando o que interessaria, para ilustrar o meu aviso, seriam os pormenores numéricos, que muito melhor permitem julgar, em consciência, uma obra de administração.
Não seriam precisas estatísticas: boas contas publicadas na 3.ª série do Diário do Governo e orçamentos de uma bem calculada previsão, tanto bastaria para trabalhar em terreno firme e não um pouco às escuras. Sem publicidade as nossas finanças nacionais não poderiam fazer valer a meticulosidade das suas contas, que tanto nos é invejada lá fora. As parafinanças vivem um regime de tabu, com um sacrossanto horror à orçamentologia, e, sobretudo, à publicidade das suas contas - não falo da publicidade de que elas se servem muito ... para uso interno -, e esta, devidamente adequada, não mete medo ao bom administrador, não embaraça a acção dos honestos, embora possa estorvar o manejo dos pródigos, com uma prodigalidade a roçar, às vezes, pela desonestidade, senão pessoal, pelo menos administrativa.
Os povos, as nações aspiram ansiosamente por uma segurança, mas não devem procurar, infantil o ingenuamente, eliminar todos os riscos da existência: há riscos que são espontaneamente fecundos, que emprestam à vida o seu pleno e luminoso sentido humano; outros há que entravam o desenvolvimento da personalidade, que criam complexos de inferioridade quase invencíveis, direi mesmo irremovíveis, e são altamente perturbadores da mecânica social.
Se o termo de segurança social, e sobretudo a sua concepção, são um tanto novos, aquela pairava já há quase um século, bem envolvida na realidade dos factos.
Quando a Revolução Francesa libertou o trabalhador da tutela das corporações, deixou-o livre, mas absolutamente desamparado, em face dos riscos da existência, pois, na verdade, as suas possibilidades de subsistência não acompanharam de perto a sua liberdade e igualdade perante a lei, porque a liberdade formal passou, por assim dizer, a ser o privilégio quase duma casta.
Embora essa liberdade permitisse na Europa Ocidental a criação de boas formas político-económicas, o que é certo é que o trabalhador não pôde aproveitar esse ar de liberdade e teve de continuar a viver no pesadelo da insegurança económica.
Foi no século XIX que o proletário urbano tomou perfeita consciência da sua classe, da sua força, apesar da incerteza económica em que vivia; perigou, por vezes, a ordem pública por causa das barricadas e greves, mas a ordem social mantém-se, nesse século, inalterável.
Ao proletário a liberdade não o preservou da miséria e a segurança social abria sossegadamente o seu caminho, e hoje já desembocou numa rotunda em que se desenham quatro caminhos: dois principais - o capitalismo liberal «newdilizado» e «fairdelizado» dos Estados Unidos e o capitalismo de estado da Rússia Soviética - e dois intermediários, duas soluções intermédias - o trabalhismo e o corporativismo. Portugal optou por este; mas às suas botas de novo caminhante vinha agarrada muita má terra liberal.
No corporativismo português o seu sindicalismo perdeu todo o carácter reinvindicativo, obedecendo a instituições jurídicas politicamente dóceis, e a carga ideológica daquele dissipou-se na sua prática de realizações, ocultando mal o liberalismo que substituiu.
Ao weltanschaung do marxismo, isto é, a concepção do mundo colectivista como solução do problema social, respondeu com um oportunismo. Ao colectivismo, que, além de uma atitude, é uma opção total do homem em face do Universo, um mito ao serviço de uma paixão, o corporativismo português, laicizado, esquecendo-se do que de tão belo contém a doutrina social católica, apresenta-se numa casuística fria de um esquema jurídico de seguros sociais, perdendo todo o maravilhoso poder da sua ética cristã.
Precisa retemperar-se no que de grande, maravilhosa, milagrosamente tem de mítico, invencivelmente mítico, a doutrina cristã. Ressalarizar o aspecto financeiro da previdência e, sobretudo, recristianizar o seu corporativismo, não adelgaçando-o com soluções demasiadamente oportunistas, mas embelezando-o e adoçando-o com a insubstituível caridade cristã que nenhum weltanschaung conseguiu atingir ou substituir.
A segurança social, libertando o proletário do seu complexo de inferioridade, da ameaça do seu futuro incerto, reduplica o valor da sua libertação política, dá-lhe