642 DIARIO DAS SESSÕES N.º 147
despesas com o tratamento dos doentes pobres residentes na área dos seus concelhos.
Ponho como esquema das minhas considerações o analisar:
a) O regime actual da responsabilidade dos municípios com o tratamento dos doentes pobres residentes na área do seu concelho. Seus inconvenientes. Necessidade da sua alteração;
b)0 caso de pagamento da dívida, neste momento existente, das câmaras aos hospitais.
Segundo o regime actual, as câmaras são responsáveis pelas despesas feitas pelos doentes pobres residentes na área do seu concelho admitidos, com guia de responsabilidade por elas passada, nos Hospitais Civis de Lisboa, nos Hospitais da Universidade de Coimbra, no Hospital Escolar, na Maternidade Dr. Alfredo da Costa, no Instituto de Oncologia, no Instituto Dr. Gama Pinto e no Hospital de Santo António, do Porto.
São ainda responsáveis as câmaras pelas despesas feitas pelos doentes assistidos nos hospitais atrás referidos quando ali admitidos de urgência.
E aqui começa todo o mal.
Como em tudo da vida de hoje, a cidade, e em especial a capital, constitui a grande miragem dos nossos dias.
Nos meus tempos de rapaz vir a Lisboa era ainda acontecimento de monta. Depois as famílias abastadas começaram a achar ser de bom tom ter casa na capital. Mas as coisas ficaram, durante muitos anos, por aqui.
Tudo, porém, se modificou. Começou por se concentrar em Lisboa (eu falo sempre de Lisboa porque só conheço verdadeiramente o que se passa no Sul do País; é natural que fenómeno idêntico ao que refiro para Lisboa se passe no Norte e Centro com o Porto e Coimbra) toda a indústria, as grandes oficinas aqui se instalaram, não há grande comerciante ou industrial que não tenha nesta terra o seu escritório. O Estado viu-se na necessidade de alargar os seus serviços para ocorrer às maiores necessidades da vida pública; houve que criar, pela mesma razão, novos departamentos. O aparecimento da organização .corporativa e da de coordenação económica, centralizando-se em Lisboa, promoveu larguíssimos recrutamentos de pessoal. O largo desenvolvimento das vias de comunicação fez saltar os sossegados provincianos da quietude das suas terras- para a vertigem das estradas. Tudo concorreu, assim, para um grande apelo de gente a caminho de Lisboa. Por esta forma, esta terra converteu-se numa nova Meca, onde se vem buscar cura para todos os males, alívio para todas as dores.
Uma vez estabelecido o princípio da obrigatoriedade de as câmaras pagarem as despesas do tratamento dos doentes pobres em hospitais de Lisboa, humanamente se compreende que aqueles, ao insistente rebate da dor, já se não considerem assistidos se não forem vistos, examinados, medicados aqui, nesta cidade, cabeça da Nação, capital do Império.
Ë certo que as câmaras controlam a passagem das suas guias de responsabilidade exige-se o parecer do médico assistente, o visto do médico municipal, a declaração do hospital local de que o doente não pode ali ser tratado, etc. , mas tudo* isto desaba, porque se o doente não obtém deferimento, por esta via, ao seu desejo de vir para Lisboa, abandona tudo, vem até cá, pede e solicita a este mundo e ao outro e acaba por ser admitido de urgência.
O Sr. Bartolomeu Gromicho: - Assim uma espécie.
O Orador: - Exactamente; diz V. Ex.º muito bem.» Eu sei, por observação directa, como se tentou trabalhar em muitos lados com interesses na organização de bons serviços locais de assistência médico-cirúrgica, mas cedo se verificou que o esforço despendido - apesar das evidentes vantagens que estava patenteando- era impossível de manter.
A existência daquela porta de saída da urgência gorou todos os esforços feitos nesta matéria. Daí o cruzar de braços desalentado da parte dos administradores da coisa municipal e o entrar-se abertamente no campo perigoso do inevitável, origem de todo o desinteresse, fonte propícia para todo o amolecimento de acção.
E verdade que a lei manda que os hospitais comuniquem às câmaras as admissões feitas de urgência, para esta ser por elas apreciada, mas bem se compreende que é difícil, senão impossível, discutir com os directores clínicos, que passam o atestado de admissão de urgência, se houve ou não esta urgência, pois a verdade é que todas as doenças a comportam e mal feridos ficariam na quase totalidade dos casos os administradores municipais lutando em assuntos médicos com os directores clínicos dos hospitais.
O Sr. Bartolomeu Gromicho: - Mas nem sempre comunicam as admissões por urgência. Na quase totalidade dos casos nada dizem.
O Orador: - Mas eu parto da melhor hipótese: é de que se cumpre a lei.
Parece-me, pois, que seria urgente tirar da responsabilidade das câmaras as despesas com o tratamento dos doentes pobres admitidos de urgência. Penso que com esta medida daríamos um largo passo na solução do problema que hoje aqui estamos debatendo. Não só é muito grande o número de doentes que entram por esta via nos hospitais de Lisboa, como é origem de verdadeira anarquia pura a administração municipal a existência de um tal sistema de criar despesas imprevistas por ordem e determinação de entidades alheias à vida municipal. Mas o pior de tudo isto é ainda o facto de, como já assinalei, este sistema provocar evidente desinteresse por parte da administração local em organizar nas terras sujeitas à sua jurisdição uma assistência que permita resolver ali, com grande economia, a maioria dos casos que hoje são mandados para os hospitais centrais.
Repito: estou na convicção de que este princípio, uma vez adoptado, de excluir da responsabilidade das câmaras o pagamento das despesas com os doentes admitidos de urgência traria uma benéfica disciplina ao assunto, que se traduzia com certeza numa grande diminuição nos encargos municipais e numa melhoria nos serviços que pela província, neste momento, defendem a saúde e a vida das nossas populações rurais. E este parece ser um aspecto muito importante, que não deve deixar de ser considerado.
E certo que a actual organização hospitalar prevê com os seus hospitais regionais e sub-regionais e postos de socorro uma larga extensão para a assistência médico-cirúrgica.
Mas, enquanto não é possível levantar toda esta obra, poderiam as câmaras, aliviadas de grande parte dos encargos com os hospitais centrais, organizar, de acordo com as Misericórdias, eficientes serviços que pudessem fixar ali médicos, a quem já se poderiam garantir vencimentos - base que lhes permitiriam deixar Lisboa, Porto ou Coimbra para viverem em terras modestas da província.
A este respeito é curioso relembrar o que disse nesta tribuna, há poucos anos, o nosso distinto colega Araújo Correia. Dos 5:187 médicos existentes no País em 1947, 1:618 exerciam a sua actividade em Lisboa, e nos distritos de Lisboa, Porto e Coimbra havia em actividade 3:146 médicos, ou seja 60 por cento do total, ficando para todo o resto do País os 40 por cento sobrantes.