10 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 170
Da expressão «por outro modo adquiridas» a seguir a parcelas compradas e expropriadas exala-se o perfume delicioso de Moscovo. Porque não dizer, preferìvelmente, «adquiridas por outra forma legal?».
A bom entendedor meia palavra basta ....
O artigo 4.º estabelece que na referida zona dos aquedutos e nos terrenos dos reservatórios, estações do captação, de tratamento ou elevatórias e outras edificações da Companhia das Aguas de Lisboa é proibido:
1.º Mutilar ou destruir árvores, arbustos ou plantas;
2.º Lançar águas, lixos e despejos;
3.º Deixar divagar ou manter presos animais de qualquer espécie.
Não resisto a assinalar que, tal qual está redigido este n.º 3.º, não só fica impedido o trânsito em muitas ruas de Lisboa e povoações dos arredores, mas até aos próprios funcionários da Companhia das Aguas é impedido o acesso aos aquedutos, pois não há duvida de que o homem também é animal incluído na generalização «de qualquer espécie» ...
Mas o mais curioso acha-se no contraste absoluto e inexplicável entre o n.º 1.º deste artigo, que proíbe mutilar ou destruir árvores, arbustos ou plantas na própria zona pertencente ao Estado dos aquedutos, captações e outras obras, e o que se determina em relação aos terrenos particulares situados fora dessa zona, e onde os perigos de inquinação das águas ou deterioração das obras são evidentemente menores.
Aqui, em vez de proibição de cortar ou mutilar árvores, arbustos ou plantas, opta-se pela solução inversa: proibir todas as plantações ou sementeiras!
É caso para recordar que bem pregava Frei Tomás ...
Efectivamente, no artigo 6.º do Decreto n.º 38 987 lê-se textualmente o seguinte:
Não é permitido, sem licença, efectuar quaisquer obras nas faixas de terreno que se estendem até à distância de 10 m para cada lado das linhas que delimitam as zonas dos aquedutos, e que se denominam «faixas de respeito».
Faixas de respeito! Com a devida vénia direi que são faixas de se lhes tirar o chapéu ...
Começa aqui a restrição, que em muitos casos pode ser importante, da fruição da propriedade particular. A negação das licenças requeridas desvalorizará irremediàvelmente os terrenos em causa e o prejuízo poderá ser elevadíssimo, principalmente em zonas urbanas.
Pior ainda o caso previsto no § 1.º do mesmo artigo, que admite o alargamento, sem limite de extensão, da faixa de respeito, quando a topografia do terreno ou a sua estrutura geológica o justifiquem.
Um simples despacho ministerial, sob proposta fundamentada da Comissão de Fiscalização das Aguas de Lisboa, mas sem que os proprietários dos terrenos sejam ouvidos, pode condenar esses mesmos proprietários à perda total do direito de fruição daquilo que é legitimamente seu. A única consolação que lhes ficaria, se este confisco fosse por diante, seria a de continuarem pagando contribuições ao Estado por terras que o Estafo não deixa utilizar!
Mas não fica por aqui o atentado a propriedade privada: mais danoso ainda é o disposto no artigo 7.º do Decreto n.º 38 987, ao determinar que «na metade da faixa de respeito que entesta com a zona dos aquedutos é proibido conduzir águas em valas, plantar árvores ou vinhas, fazer sementeiras, depositar estrumes ou praticar quaisquer factos que possam sujar a água».
Portanto, ao longo das centenas de quilómetros de extensão dos aquedutos haverá uma faixa de 10 m (5 de cada lado), onde a terra, propriedade privada, ficará
perdida para os proprietários legítimos, porque nunca mais poderão utilizá-la. E há pequenas propriedades com largueza pouco maior, igual ou inferior a estes 10 m.
No artigo 8.º do decreto em causa permite-se a marcação de áreas de protecção das captações, condutas adutoras, estações de tratamento ou elevatórias e reservatórios, a fim de manter a pureza da água.
Não se limita por qualquer forma a grandeza de tais áreas. Dentro delas, a Companhia das Águas poderá proceder a demolições. Não ficou claro, no texto do § 1.º do mesmo artigo, que tais demolições devem ser precedidas de expropriações por utilidade pública.
É simplesmente iníquo que, ficando aquelas áreas completamente inutilizáveis pelo proprietário, a Companhia das Águas de Lisboa não seja obrigada a adquirir as terras, nos termos da cláusula XX do seu contrato com o Estado.
É ela quem vende a água, recebe o seu preço e o seu lucro. A ela competem os encargos do negócio. Não parece correcto nem decente transferi-los, com unia penada, para os proprietários das terras!
Isto traz-me à memória aquele galego aguadeiro dos tempos antigos, que descrevia, em carta à família, a inacreditável hospitalidade lusitana: «a água é deles, e nós vendemos-lha ...».
Agora a concessionária do Estado vendo-nos a água, mas leva-nos também as terras...
A Assembleia Nacional pronunciou-se, na oportunidade devida, acerca das fórmulas de expropriação por utilidade pública. Soube corrigir tendências socializantes e evitar espoliações ruinosas.
O caso presente é mais grave e mais danoso que o das expropriações.
Trata-se, na faixa de 10 m e noutras zonas, de confisco puro e simples, sem indemnizações aos proprietários, que afectará os interesses legítimos de milhares de cidadãos portugueses e os fará descrer do Estado-Pessoa-de-Bem.
E isto determina-se em decreto regulamentar, sem força de lei, com desrespeito que me parece evidente da Constituição, e por meio de disposições não autorizadas explicitamente no Decreto-Lei n.º 38 665, que serve de base ao diploma quo estou criticando.
Por último, pergunto: são indispensáveis, para protecção da segurança dos aquedutos ou defesa da sanidade da água captada e conduzida, as faixas de respeito agora estabelecidas?
Responderei imediatamente, pelo que conheço das regiões atravessadas e pelo que toda a gente nelas pode ver, que nunca existe necessidade de faixa de respeito quando os aquedutos andam acima dos terrenos confinantes.
No caso de aquedutos subterrâneos podem as raízes das árvores prejudicar a sua conservação, e seria razoável determinar o corte dessas árvores onde e quando tais prejuízos existissem. Mas o Estado, quando proprietário, proíbe o corte às suas árvores oficiais. Com certeza foram tornadas inofensivas por algum condicionamento misterioso e inacessível ao comum dos mortais. Quanto às culturas arvenses, com estrume ou sem ele, só prejudicarão a qualidade da água se as condutas não forem impermeáveis ou tiverem roturas devidas a deficiência e falta de cuidado do conservação.
Cumpre à Companhia concessionária construi-las e repará-las de forma a evitar inquinações. Não queira desculpar-se com outrem.
Frequentemente as condutas subterrâneas de água em Lisboa passam ao lado ou por baixo de canos de esgoto - e ainda ninguém se lembrou de proibir a existência destes canos. Ou pensa-se fazê-lo também, em nome da sanidade pública?