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690-(6) DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 205

Não interessa saber-se o que então lhe disse, preso da inquietarão que me causava o quadro das graves consequências que uma resposta afirmativa acarretaria para a sua vida pública e particular, pois o Dr. Fezas Vital logo me revelara o seu propósito de, se aceitasse o encargo, abandonar, por naturais melindres (próprios do seu nobre carácter), os cargos públicos de confiança que então ocupava: um deles era o de Procurador à Câmara Corporativa, onde ocupava então a presidência.

Importa apenas testemunhar que me apercebi bem, nesse momento, do drama que se passava no íntimo da sua consciência, pois, inclinado já a aceder à honrosa solicitação, como que hesitava ainda perante o sacrifício quase sobre-humano que para ele representava o apartar-se da Câmara Corporativa e quebrar para sempre um labor a que consagrara tantos anos da sua vida e a que se dedicara com tanto entusiasmo.

A sua resposta foi, como se sabe, afirmativa. E assim a Câmara se viu, com surpresa e desgosto, privada não apenas do seu Presidente, mas de um dos seus maiores valores.

Não exagero dizendo que foi ele o principal obreiro do renome alcançado por esta Câmara, pois, dotando-a logo de início com sucessivos trabalhos de alto nível intelectual, foi ele, a bem dizer, o criador do padrão por que tinham de ser aferidos todos os trabalhos que saíssem desta Casa. Assim criou para todos um estímulo, que perdurou mesmo após o seu afastamento.

E afinal, volvidos poucos meses após a sua renúncia, começou o calvário dos sofrimentos físicos, a série de intervenções cirúrgicas com que a ciência o disputou à morte.

A partir dessa data curtos foram os períodos de tempo em que o Dr. Fezas Vital pôde ainda regressar às suas actividades. E com que alegria o fazia sempre! Mas não tardava que sobreviesse nova decepção, de cada vez mais cruel. Submeteu-o a providência a uma longa provação. Dir-se-ia que para santificar a sua alma pelo sofrimento. E na verdade não conheço exemplo mais vivo de resignação cristã e de coragem perante o martírio que foi o final da sua vida. Extinguiu-se por fim, minado pela terrível doença.

Paz à sua alma. E se àqueles que desta vida se apartam é permitido conhecer e dar valor aos sentimentos que deixam nos que cá ficam, conforte-o a certeza de que, pela sua inteligência, pelo seu carácter, pelas suas virtudes e, sobretudo, pelo exemplo edificante da sua vida particular e pública deixou em todos quantos o conheceram um forte sentimento de saudade, de simpatia, de admiração e de respeito.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Digno Procurador Júlio Dantas.

O Sr. Júlio Dantas: - Sr. Presidente e Dignos Procuradores: o prestígio das instituições deve-se quase sempre ao zelo dos primeiros homens que as serviram. Quem fez esta Câmara foi um pequeno grupo de homens de boa vontade que desde a primeira hora encarnou o seu espírito, assegurou a sua unidade, definiu a sua função. Três desses homens insignes desapareceram já na morte: o general Eduardo Marques; o Prof. Fezas Vital; o engenheiro Vicente Ferreira. Sejamos gratos à sua memória. Ao primeiro - homem de guerra - prestou oportunamente a Câmara o preito do seu reconhecimento e da sua saudade. Ao segundo - homem de leis (e um gentil-homem!) - acaba de referir-se em termos lapidares o Digno Procurador Pinto Coelho, reitor da Universidade Clássica de Lisboa. Do terceiro - homem de Estado - quis V. Ex.ª, Sr. Presidente, que me coubesse a honra de falar agora. Queira V. Ex.ª aceitar os meus agradecimentos e as minhas homenagens.

António Vicente Ferreira pertenceu à Câmara Corporativa, como eu, desde que ela se constituiu. em 1935. Fez, como eu também, parte, do Conselho da Presidência. Embora pertencêssemos a secções diferentes, pude acompanhar de perto a sua acção notabilíssima, ouvir o conselho da sua experiência e da sua autoridade, ler os seus pareceres magistrais, ricos de doutrina e de linguagem, admirar o seu bom senso, a sua serenidade, a sua fina e penetrante ironia - forma superior do seu desdém por certas coisas. Aqui trabalhámos durante dezoito anos. Como eximir-me, nestas circunstâncias, ao encargo de falar de Vicente Ferreira? Como recusar este pequeno serviço à sua memória, sabendo, como todos nós soubemos - e com que amargo travo de comoção! -, que o eminente homem público levou a sua dedicação por esta Casa até ao ponto de relatar, quase moribundo, a última proposta de lei que lhe foi distribuída? Eu não podia deixar de aceitar o convite de V. Ex.ª para ocupar hoje esta tribuna. Por todas as razões que aduzi e por mais uma ainda. Não tenho a honra de ser Procurador por escolha ou nomeação pessoal do Governo; sou-o por inerência do cargo de presidente da Academia das Ciências, ao qual a lei atribui a representação, na Câmara, das academias e institutos de alta cultura. O engenheiro Vicente Ferreira - um sábio, além de um estadista- não foi apenas meu colega nesta Câmara; foi meu confrade na Academia a que presido e, título que sobre todos me obriga, foi meu amigo desde os bancos das escolas.

Com efeito, conheci-o há cinquenta e seis anos, quando, na antiga Escola Politécnica, frequentávamos ambos as cadeiras preparatórias - ele de Engenharia, eu de Medicina, Rien, dans l'homme de ringt ans - disse Balzae - ne peut faire préroir la ralcue de l'homme de trente ans. Não sucedeu assim com Vicente Ferreira. Pertencente, como eu, a uma geração que - não sei porquê - não teve mocidade, o ilustre homem público era, já então, simples estudante, o mesmo homem calmo, prudente, reflexivo, ponderado, silencioso, meticuloso, tão parecido com aquele que a Câmara conheceu - a mesma modéstia, a mesma gravidade, o mesmo cachenez. Os mesmos olhos claros e vivíssimos a cintilar por detrás dos cristais da luneta -, que a minha memória já não sabe distinguir, uma da outra, as duas imagens. Os homens que nunca foram moços têm. pelo menos, a vantagem de envelhecer mais devagar. Fomos companheiros e amigos. Depois a vida separou-nos e cada qual seguiu o seu caminho. Só nos encontrámos nas cadeiras do Poder, em 192, ele Ministro das Colónias, eu, pela segunda vez, titular da pasta dos Negócios Estrangeiros. História antiga? Sem dúvida. Mas. Meus senhores, a história antiga também é história. António Vicente Ferreira viveu bastante tempo para ter conhecido duas épocas políticas diferentes; e a sua estatura mental e moral foi suficientemente grande para as ter honrado a ambas. Quando assinámos o compromisso na sala dourada, do Palácio de Belém, abraçámo-nos afectuosamente, como se nos tivéssemos deixado na véspera. Começámos então a viver - ele, com singular brilho; eu, como pude - um dos mais agitados momentos da vida política portuguesa. Tivemos saudades dos bancos, da Escola. Eram muito mais cómodos do que as cadeiras do Poder.

Vicente Ferreira não foi, portanto, apenas um homem do presente; foi um homem do passado. Mas não exageremos o sentido desta expressão. Homens do passado somos, afinal, todos nós - porque o presente começa hoje. A vida pública do saudoso vice-presidente desta