608 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 99
O Orador:- V. Exa. sabe que desde as Ordenações Filipinas o poder das vereações era tão limitado que até as simples fintas para as reparações dos caminhos tinham de ser autorizadas pelo Poder Central? Que não podiam dar tenças e que toda a deliberação que importasse despesa não prevista na lei lhes era proibida? Que mesmo para as desposas autorizadas ora necessária a intervenção do juiz da terra?
V. Exa. sabe que o poder dos vereadores era tão pouco que estavam proibidos de mandar emissários à Corte, ainda que as despesas de viagem fossem à sua custa?! V. Exa. esquece que essa versão de um municipalismo constantemente autónomo foi produto dos políticos românticos, que por essa via queriam suprir a falta de aplicação à realidade nacional dos esquemas políticos traduzidos das legislações estrangeiras, e que tão mal se adaptavam à nossa índole que se pretendeu corrigi-las com o revigora mento de uma estrutura de política local supostamente tradicional?
O Sr. Carlos Moreira: - V. Exa., na longa divagação mais ou menos histórica que acaba de fazer, esquece algo de fundamental. Apesar do pouco poder a que V. Exa. se refere, os representantes dos concelhos tinham assento em determinado banco em Cortes, participando de forma bem relevante na vida pública.
Fala V. Exa. no municipalismo romântico, acusando certo desmerecimento ao prestigio da instituição municipal ... A verdade é que um romântico que foi grande mestre e tratou como ninguém até hoje a história das instituições municipais afirmou ser o município a mais bela instituição que o mundo mitigo legou ao mundo moderno. Chamava-se, ao que parece, Alexandre Herculano ...
O Orador:- Eu verifico com mágoa que V. Exa. aos meus factos objectivos responde com palavras comovidas e em termos em que o entendimento é impossível: ou nos colocamos ambos no mero campo das palavras, ou falamos ambos a linguagem dos factos verdadeiros.
E como, dada, a diversidade destas posições, de nada valeria continuar a troca de impressões, continuo as considerações que interrompi.
O Sr. Carlos Moreira: - Lamento que os factos expressos nas palavras que proferi de comovida admiração pelo grande mestre da História e da Língua tenham causado mágoa a V. Exa.
O Orador: - Tinha dito que a intervenção do Conselho de Ministros marcava o carácter excepcional da autorização e, por outro lado, seria esse o melhor processo de impedir que, ao fim de cada período duodecenal, se abrisse a oportunidade de novas transigências diante de pressões que sempre haveriam de se exercer.
Deixei para o fim a referência a uma objecção de outra natureza, que se tem correntemente formulado, e que consiste em sublinhar as dificuldades criadas a uma larga e autêntica renovação dos quadros da administração local, pela actual carência do pessoas que reunam as qualidades e a disposição indispensáveis para tal função.
Tem de se reconhecer a veracidade da crítica. As questões suscitados com a escolha de pessoal para a presidência das câmaras vão sendo de solução cada vez mais difícil. Mas o que não vejo é que o argumento se possa articular logicamente na economia do debate, e especialmente que possa ser invocado como razão que aconselhe; a ilimitada duração dos mandatos.
Essa falta de elementos disponíveis, com qualificação bastante para assegurarem a cada vez mais complexa gestão dos municípios, obriga, a meu ver, não a prolongar os mandatos, mas a reanimar a vida local e a encorajar a fixação e revelação de valores novos.
Parece-me líquido que isto não pode ser conseguido com decretos-leis, quo magoam mais do que estimulam; mas também não vejo que a permanência nus funções por espaços de vinte e trinta, anos seja a forma mais conveniente de assegurar aquela renovação e encorajamento de valores.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Penso mesmo que se, em consequência da falta de pessoas, se fosse para a solução do prolongamento dos mandatos, isso representaria que se aceitava o mal como irremediável; e o princípio ínsito em tal solução, levado às suas extremas consequências, conduziria a ocupação vitalícia dos lugares e, mais cedo ou mais tarde, à extinção da função, por falta de servidores. É manifesto que a consequência, é absurda: mas saliento-a para mostrar até que ponto seria errado o querer apresentar como argumento neste debate a actual falta de pessoas.
A questão da crise do escol nos meios rurais prende-se com outras ordens de problemas, e são bem outros os meios que podem, até certo ponto, contribuir para a resolver. Ela resulta de uma transformação geral das condições de vida, cujos efeitos não podemos impedir; mas, talvez actuando ao nível das condições, os efeitos pudessem ser diferentes do que são. Mas trata-se, manifestamente, de questões que nada têm que ver com o problema que hoje está na ordem do dia.
Vou portanto concluir: em harmonia com as considerações produzidas, votarei pela ratificação do diploma, com as emendas que, em harmonia com os resultados do debate, lhe venham a ser introduzidas.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Amaral Neto: - Sr. Presidente: li algures que certo famoso cabo de guerra francês, feliz em grandes batalhas e reputado pela serenidade em lances difíceis, por vezes surpreendia o seu estado-maior pondo, em situações do emergência aparentemente carecidas de imediatas providências, a questão prévia de apurar o que realmente estava em causa: «au fond, de quoi s'agit-il?». E não raro os problemas logo se aclaravam e a confiança de os resolver vinha rápida, com o reduzir da situação aos pontos essenciais e o definir em consequência os objectivos, para assentar nos modos de os atingir.
Esta natural e sã metodologia facilmente a esqueceremos se postularmos conhecimentos que podem, não estar nos espíritos dos nossos ouvintes tão bem firmadas como nos nossos próprios; e os velhos retóricos bem o sabiam quando ensinavam que depois do exórdio e da proposição um discurso bem ordenado deveria apresentar, antes da prova, a narração do caso.
Não me propondo do modo algum fazer um discurso com todas as suas seis partes clássicas, afigura-se-me todavia que tem faltado neste debate precisar a questão de fundo e examinar as proposições que ela pode motivar, e é tão-sòmente com estes modestos fins que venho a uma discussão da qual preferiria afastar-me, por razões bastante conhecidas para ser útil recordá-las.
O Decreto-Lei n.º 42 178, cuja ratificação nos prende, não contém senão três artigos. O primeiro altera ou inova, no Código Administrativo nada menos do que quinze preceitos, na maioria apenas com actualização de denominações ou aperfeiçoamentos de «redacção ou de normas administrativas que não suscitam