858 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
condição que limita a faculdade que o Governo tem de legislar.
Suponham VV. Ex.ªs que eram eliminadas as últimas restrições ao exercício do poder legislativo pelo Governo e que, em consequência, mais se esbatiam os resultados da actividade da Assembleia.
De harmonia com o tão curioso estilo de argumentar que ficou exposto dir-se-ia naturalmente: a realidade mostra que a Assembleia não funciona três meses, mas apenas um; há, por isso, que harmonizar a verdade formal com a real; logo deve consignar-se na Constituição que as sessões legislativas passarão a durar um mês.
A seguir, por sucessivos escalões, e sempre dentro de tal lógica, verifica-se que praticamente a Assembleia não funciona.
Novo argumento: a Assembleia não funciona, o Governo é que exerce todos os poderes; consequentemente, há que riscar a Assembleia do quadro dos órgãos da soberania, do texto constitucional, para que este se harmonize e respeite a tal verdade real.
A isto conduziria, segundo creio, a lógica do referido parecer da Câmara Corporativa, se fosse de aceitar.
As coisas não podem, porém, ser encaradas nos termos e com o espírito que ficaram expostos.
Realmente, assente como estava - e muito bem - que só era de admitir a publicação pelo Governo de decretos-leis nos casos de urgente necessidade pública, a circunstância de o Governo não respeitar tal limitação conduzia, logicamente, não a suprimi-la, uma vez que nada em vista disso se invocava como justificação a não ser a própria violação da Constituição, mas sim a procurar criar condições que, efectivamente, permitissem impor o respeito da lei fundamental da Nação, até porque o exemplo deve vir de cima.
A Câmara Corporativa entendeu antes que eram de premiar as consumadas violações, legitimando-as constitucionalmente para o futuro.
Em face de tudo isto cabe perguntar:
Que valor poderia ter o argumento que porventura se quisesse extrair de uma evolução, da Constituição, no sentido restritivo dos poderes legislativos da Assembleia, processada pelo modo e nas condições que ficaram referidos?
Contra o espírito geral do projecto agora em exame também se pode argumentar ser contra-indicado confiar largos poderes às assembleias representativas, uma vez que estas se revelam, pela sua própria contextura, incapazes de trabalho eficiente e rendimento satisfatório, mormente no campo legislativo.
O argumento só poderia valer, é evidente, para os casos em que, por virtude das suas muito largas atribuições, as assembleias não conseguem delas desempenhar-se capazmente. Não vale, por conseguinte, para o nosso caso concreto, em que tal se não verifica, como já mais de uma vez acentuei.
Além disso, a observação padeceria ainda de um outro vício, para o qual me não dispenso de chamar a atenção.
Admitindo que realmente as assembleias se revelam lentas, pouco eficientes e desorganizadas no seu trabalho, o que parece razoável e indicado, desde que se aceita a necessidade da sua existência, é procurar criar-lhes estímulos e condições de trabalho que atenuem e compensem quanto possível esses defeitos, por assim dizer originários. Proceder de modo contrário não pode deixar de redundar num agravamento e de fazer avultar tais defeitos.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Na verdade, e concretizando, se uma assembleia apenas funciona três meses no ano, se nesses três meses se incluem. ainda as férias do Natal e Carnaval, e até às- vezes as da Páscoa, se o âmbito da sua competência exclusiva é muito> limitada, se o Governo pode legislar a maior parte do ano sem possibilidade de os decretos-leis serem sujeitos a ratificação, se ainda por cima parece que se procura às vezes concentrar a publicação dos decretos-leis nesse período de liberdade legislativa, se, assim, não tem praticamente necessidade de submeter propostas de lei à Assembleia, se os Deputados não raro tomam conhecimento dos assuntos a discutir à última hora por modo a não poderem debruçar-se sobre eles com a devida atenção, se os elementos solicitados ao Governo são fornecidos muitas vezes tarde e a nas horas, se as condições de trabalho dos Deputados não são facilitadas e, vá lá - já é azar -, se nem as condições acústicas desta sala ajudam (risos), como é que a Assembleia, por muitas que sejam as suas virtualidades de acção e por maior que seja a sua boa vontade, pode produzir trabalho satisfatório? Só por milagre, evidentemente.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Este apontamento ajuda a mostrar que, se é exacto revelarem-se assembleias por vezes insuficientes para acompanhar as modernas exigências legislativas e, de um modo geral, pouco produtivas, também é verdade que essa insuficiência não reveste o grau que se insinua, ou claramente se diz, e que determinados estados de coisas aparentam.
É que não raro, começando-se por argumentar com a insuficiência das assembleias políticas, restringem-se os seus poderes e esbate-se a sua acção em tais termos que, para além e independentemente das respectivas deficiências congénitas, não podem mesmo produzir trabalho aceitável e rendimento que convença.
Quando tal sucede às deficiências naturais das assembleias acrescem outras, agora artificialmente criadas, passando, assim, aquilo que apenas, era insuficiente a apresentar-se como incapaz.
Assim se pode até gerar como que um complexo de inutilidade nos próprios membros das assembleias, determinador de um estado de espírito fatalista, de apatia e desinteresse, cujos reflexos e consequências nos corpos políticos se torna desnecessário acentuar.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Ainda contra a orientação do projecto, não pode dizer-se que a legislação, hoje mais do que nunca, implica com problemas técnicos e especializados para cuja apreciação e resolução as assembleias mão estão devidamente preparadas e apetrechadas.
É este hoje um dos mais estafados argumentos, que, com mais volta, menos volta, se acaba por trazer aos debates quando, por qualquer razão, e até sem razão, se pretende comprimir a posição das assembleias.
A cada passo se vê aflorar este argumento, como, por exemplo, no parecer da Câmara Corporativa sobre o projecto, designadamente a propósito da legislação tributária, chegando-se, ao ler o parecer, a ficar com a impressão de que as assembleias sofreriam como que de uma normal incompetência em matéria de impostos.
Disto, porém, se cuidará no momento oportuno.
Sem dúvida que a falada e apregoada técnica tem hoje roa papel de manifesto relevo e incontestável interesse em todos os sectores da vida moderna. Mas a partir daí não se pode ir, como às vezes se vai, até ao ponto de, colocando-a, mais ou menos discretamente, numa posição de supremacia, nela absorver tudo o