942 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 120
O Orador: - O exemplo de alguns sindicatos de profissões liberais, onde o próprio Governo procura a todo o transe impedir que se intrometa a política, não para se defender a si mesmo, imas para defender a própria instituição, é perfeitamente esclarecedor do que pretendo dizer.
O Sr. Araújo Novo: - Muito bem!
O Orador: - Estes quatro obstáculos são de ordem técnica, mas procedem todos da mesma raiz teórica, e creio que ela é a de que interesse corporacional e interesse político são realidades de plano diferente, que se não podem confundir sem prejuízo mútuo.
Surgem ainda as dificuldades resultantes do condicionamento nacional. Há mais de uma; a falta de autenticidade da representação orgânica e o estado actual da opinião pública quanto à organização corporativa não podem deixar de se lembrar. Mas há um motivo de especial gravidade que me parece andar um tanto esquecido: Portugal não é a metrópole, e qualquer sistema de política geral que apenas se pudesse aplicar na metrópole não serviria para Portugal.
O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Muito bem!
O Orador: - O ultramar não está organizado corporativamente, nem parece que as condições locais permitam que o venha a estar, num futuro previsível. Haveria, portanto, que aplicar um sistema de direito político geminado, com soluções diferentes, consoante se aplicassem às províncias da metrópole ou às de além-mar. Não sei se isto favoreceria a unidade política do Mundo Português.
E ocorre, por fim, aludir às dificuldades do voto orgânico, quando encaradas do plano superior da filosofia moral. O homem não é analisável em termos mecânicos e não se compõe de partes distintas que se possam separar. O homem-operário, o homem-munícipe, são abstracções necessários, mas nenhuma delas traduz todas as virtualidades morais da pessoa. Reduzir a um aspecto determinado da vida soei ai a possibilidade da relevância política de cada homem é negar o facto evidente da sua unidade. E é negar igualmente a sua essência da liberdade. Porque, se se admite que o homem integrado numa estrutura tem, pela força da integração, a sua opinião limitada a certo ângulo de vista, e só se aceita que através dele a possa afirmar, porque só então será válida, estamos a cair no determinismo: o homem seria determinado pelo conjunto social. A concepção do homem que está na base das nossas instituições é inarmonizável com essa mutilação: é a do homem-consciência, livre por natureza e com vocação para se decidir independentemente dos condicionamentos resultantes da sua inserção no tecido social.
As objecções que acabo de enumerar não puderam até hoje ser resolvidas em nenhum país, apesar de - creio que em todos - se terem desde há muito tempo tornado claros os inconvenientes do sufrágio directo, cómoda ilusão aritmética cuja veracidade não resiste ao primeiro exame. Não há, por isso, nenhum exemplo de nação que tenha adoptado o voto orgânico como forma de designação dos dirigentes. Pelo menos, de nenhuma nação que tenha do homem aquele alto conceito a que acabo de aludir. Creio que na Rússia soviética, onde, como se sabe, não há eleições, se justifica a selecção dos governantes por uma escolha apurada através de uma série de organismos sucessivos. Discute-se muito se esse sistema de governar se tem mostrado eficaz em aspectos técnicos; mas ninguém - nem mesmo os que por sistema defendem tudo quanto vem de lá - ousa sustentar que o problema político da Rússia esteja resolvido. No tocante à chefia do Estado, tudo se passa como se nenhuma lei existisse. O Governo pertence ao que, mais hábil ou mais brutal, consegue o massacre doutros concorrentes: devia ser esse o sistema dos primeiros tempos do Mundo, quando a força física era a única lei que se invocava.
Fora deste exemplo, o que se vê é que se reconhece à organização, corporativa uma importante função para a normalização das relações entre os homens, entre os interesses, entre os sectores; um papel especialmente produtivo no domínio do económico e susceptível de úteis extensões ao campo social; que se assinala aos seus mais altos órgãos uma função consultiva, de informação técnica e de colaboração com os sectores da direcção do Estado. Mas fica-se por aí: não se pôde concluir ainda que a tantos méritos reúna o de servir de aparelho político do Estado.
E, se bem virmos, é exactamente esse o lugar que lhe está marcado na Constituição Portuguesa; que assinala aos organismos corporativos o seu domínio próprio - cultural, assistencial, de aperfeiçoamento técnico ou de solidariedade de interesses; que restringe a sua participação na organização política do Estado à interferência nas eleições para as autarquias, e que, no tocante à feitura das leis, define para a Câmara Corporativa uma função apenas informativa, e portanto acessória, dos órgãos políticos propriamente ditos. De tudo resulta que, quando se fala da concepção corporativa, da Constituição, se parte logo de um pressuposto falso: o de que a Constituição é de concepção corporativa. Há aí uma confusão entre Nação e aparelho político nacional: o que é corporativo não é a Constituição em si mesma, mas a Nação tal como a Constituição a compreende. A Constituição, estatuto político da Nação, não corporativa, mas política. Decerto se coloca a questão de saber se ó estatuto político de uma nação corporativa deve ou pode ser corporativo; ora eu creio ter mostrado que a questão do poder ser ainda não foi decidida, pelo que a questão do dever ainda não pode ser posta.
O Sr. Simeão Pinto de Mesquita:- Muito bem!
O Orador: - Em conclusão, a parte doutrinal da justificação que se quis dar improcede completamente: nem a fórmula da eleição proposta seria de tipo orgânico, nem, quando o fosse, estariam verificadas os condições da oportunidade da sua aplicação, nem, finalmente, tal aplicação estaria na lógica dos nossos princípios constitucionais.
Há que examinar o mérito da justificação circunstancial; ela vai - recordo-o - em dois sentidos: no de autorizar a proposta na lição do direito comparado e no de lhe demonstrar a necessidade em vista dos desmandos que costumam acompanhar o sufrágio directo.
O argumento do direito comparado pouco poderia, só por si, provar. Se algum direito tem de ser inteiramente nacional, rigorosamente moldado às exigências e condições próprias de cada país, esse é o direito constitucional. Nós temos, aliás, uma experiência dos males que podem vir da sugestão dos modelos estrangeiros neste domínio: foi o ter-se quebrado subitamente com toda a tradição governativa forjada em sete séculos de história que lançou o País no estado de sobressalto e inadaptação política que encheu de lutas o século passado.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Mas os primeiros legisladores liberais pensavam muito nó exemplo alheio, e parece que em