DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 131 1158
No projectado § 7.º fala-se em actos definitivos e executórios de conteúdo essencialmente administrativo doa órgãos da administração pública.
Ora, tratando-se de um número e de um parágrafo do mesmo artigo 109º e empregando-se em ambos a expressão «administração pública», no conjunto da
qual o Governo superintende, certamente que o sentido as duas idênticas expressões só pode ser um e abrange todos os actos administrativos do Governo e dos seus agentes. E assim a questão deixou de ser de técnica legislativa somente, para ser também de bem simples e clara hermetêutica jurídica. Quer dizer: o § 7.º por mim projectado como aditamento ao artigo 109.º está tecnicamente perfeito e não poderá suscitar qualquer dúvida de interpretação, pois enquadra-se sem contradição nem repugnância na economia do citado artigo 109.º, seus números e respectivos parágrafos.
Logo a seguir o parecer aduz outro argumento, implicando com a expressão usada no projectado § 7 º, que diz «actos de conteúdo essencialmente administrativo»
Supõe-se, e bem, que esta expressão foi empregada para opor esses actos administrativos caos actos do Governo de conteúdo essencialmente político» usada com o n.º 2.º do artigo 16.º da lei orgânica do Supremo Tribunal Administrativo.
E então o ilustre relator do parecer aproveita o ensejo para afirmar a sua conhecida tese da «Teoria dos actos de governo», segundo a qual são actos políticos ou de governo Iodos aqueles actos de Executivo que a lei considere absolutamente insusceptíveis de apreciação contenciosa, qualquer que seja o grau da sua vinculação legal e não obstante o seu carácter de actos definitivos e executórios Por maiores que sejam a consideração e o respeito que me merece o ilustre relator do parecer, que é, sem dúvida, um distinto mestre de Direito Público, confesso que o sentido demasiadamente formal da sua tese e o desmentido que a realidade da vida funcional governativa e administrativa do Estado lhe opõem não são de molde a podê-la aceitar.
Quem se dê ao cuidado de consultar a legislação de carácter excepcional - e é bastante - que subtrai à apreciação contenciosa actos de natureza administrativa terá ocasião de se certificar de que nenhum desses actos perdem a natureza de actos administrativos para se transformarem, por simples taumaturgia jurídica, em actos de natureza política.
E que actos políticos são só aqueles que são praticados no exercício da função governativa, e o carácter próprio desse exercício é a independência do conteúdo esses actos em relação ao direito constituído.
Esta é a lição de outro mestre não menos autorizado que o relator do parecer, lição inteiramente convincente.
Com efeito, o Prof. Marcelo Caetano, a quem com toda a justiça se poderá atribuir o primeiro lugar entre os nossos administrativistas, repele, em absoluto, a tese a que nos vimos referindo, como pode ver-se a p. 4 do seu Manual de Direito Administrativo (3ª edição).
Segundo este ilustre professor, «serão actos especificamente governativos os praticados pelos órgãos da soberania, mediante a afirmação de uma vontade autodeterminada, isto é, que não tem outros limites que não sejam a realização do bem comum nacional, tal como é visto pelos suportes dos órgãos ou ansiado pela colectividade.
A liberdade jurídica na realização do interesse nacional, eis a característica dos actos do Governo. Repare-se bem que não se trata de actos de execução da lei, embora discricionários, ou actos indiscutíveis por serem praticados em última instância, mas sim de actos que desde a origem obedecem apenas às conveniências da razão de Estado como lídima expressão da soberania».
Em contraposição ao acto do Governo de conteúdo essencialmente político, temos o acto administrativo definitivo e executório.
Este, na clássica definição da doutrina, é a conduta voluntária de um órgão da Administração, no exercício de um poder público que, pondo termo a um processo burocrático ou dando resolução final a, uma petição, define, com carácter obrigatório e coercivo, situações jurídicas individuais. Não procede, portanto, o segundo argumento do parecer.
«Em terceiro lugar - argumenta o parecer - o projecto parece orientar-se no sentido de garantir a todos os actos definitivos e executórios (excluídos os actos políticos, de que se faz provavelmente uma ideia muito restritiva) a possibilidade de apreciação contenciosa».
Ora é isso mesmo. Mas, continua o parecer, «o legislador pode entender que há, nesta ou naquela hipótese, um interesse público de mais peso do que a defesa jurisdicional do direito - o interesse de deixar toda a independência aos agentes ante os tribunais, em termos de a decisão daqueles se ter de presumir correcta e legal, ainda que o não seja de facto». Salvo o devido respeito, este argumento parece-nos inquinado do vício da tendência absolutista ou totalitarista, e por isso incompatível com a ética do nosso Estado de administração legal. O legislador de um Estado que, como o nosso, adopta um regime de legalidade poderá estabelecer que certos actos, dada a sua natureza íntima inspirada numa superior razão de Estado, mão estão subordinados a qualquer lei positiva preexistente, mas, antes, poderão ser praticados com inteira liberdade jurídica. Isto sim, admite-se; portanto, também se admite, neste caso, que a lei geral ou especial exclua tais actos da apreciação contenciosa. E que esta apreciação destina-se a rever a legalidade, na prática de um certo acto e neste caso não há nada efectivamente a rever, uma vez que o acto é praticado com inteira independência das normas de direito positivo.
Mas o que já se não admite nem se compadece com a ética de um Estado de direito e de administração legal é que se dispense a fiscalização jurisdicional da legalidade de um acto inteiramente subordinado ao direito positivo preexistente, só porque se entenda que pode haver um interesse público quê supere o da fiscalização da legalidade. Não pode haver tal interesse público no nosso Estado de administração legal. Só se concebe que tal interesse possa existir num Estado totalitário em que se preste culto à sua omnipotência e em que se oponha à nossa concepção normativista da vida administrativa estadual uma concepção «salutista» de tendências absolutistas ou totalitárias. Mas esse Estado não é o Estado Português.
Portanto, também o último argumento do parecer da Câmara Corporativa contra o projectado § 7.º cai pela base.
Nestes termos, espero que a Câmara de ao projecto agora em discussão a aprovação que merece. Desta maneira ficará eficazmente assegurada, por forma constitucional, a garantia contenciosa da fiscalização jurisdicional da legalidade da Administração, base de todo o ordenamento do nosso direito administrativo. Ainda a este propósito, e para terminar, interessa citar o justo e autorizado comentário do Prof. Marcelo Caetano a respeito da exclusão da fiscalização contenciosa de certos actos administrativos definitivos e executórios. Diz esse ilustre professor a p. 726 do seu Manual (3ª edição): «A exclusão do contencioso desta categoria de actos deveria, em rigor desaparecer num verdadeiro Estado de direito ou há discricionariedade ou não há, mas não havendo deve sempre facultar-se o recurso contencioso. Tudo o resto é puro arbítrio, desprezador dos direitos