1198 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 132
Se indiquei na minha proposta a expressão «comunidade portuguesa» não foi porque a palavra «povo» não tivesse surgido também no meu pensamento, a par de «grei», «comunidade» e outras mais. Porém, exactamente pela necessidade de perfeição exigida pela lei constitucional, fizemos incidir a nossa atenção sobre os elementos chamados em ciência linguística elementos significativos e psicológicos do valor das palavras
Basta consultar os dicionários ou tratados, não falando já das obras literárias não especializadas, para ver que, tanto cá como nas literaturas estrangeiras, a palavra «povo» merece o reparo feito pelo Prof. Lapparent, já por mim citado, de ser «um termo demasiadamente pouco preciso».
A razão que nos levou à preferência da expressão escolhida sobre a palavra «povo» foi o defeito da polissemia deste termo, ou seja da pluralidade de ideias e acepções que nele se incluem e diminuem o poder definidor que devia tornar indiscutível o significado e acepção do vocábulo escolhido
O primeiro, em boi a não o mais importante, destes aspectos polissémicos é o que provém da particularização, não só histórica, mas ainda actual em sociologia, que a palavra estabelece na sociedade globalmente considerada, implicando um conceito de divisão de classes na estruturação do corpo social
A própria organização dos estados definia diversas classes sociais que atravessaram as organizações medievas e persistiram até ao século passado, dividindo a sociedade em ciei o, nobreza e povo, designando-se por esta última palavra a classe socialmente inferior
Ë certo que os tempos mudaram e as classes também. A plutocracia substituiu a aristocracia na evolução democrática das sociedades As posições intelectuais ascendem, como em todos os tempos, aos níveis superiores das classes sociais Mas ainda hoje, apesar do sentido generalizador que se lhe pretende dar, a palavra é constantemente invocado, até mesmo pelos intelectuais que se orgulham de lhe pertencer, como designadora de uma classe social com possibilidades mais limitadas e para as quais, justamente por isso, se reclamam particulares atenções E é a forca da ideologia e linguagem democrática, tão querida na literatura política internacional da actualidade, que persiste em manter a palavra com este sentido particularista, dando-lhe muitas vezes um significado de matiz político
Não é este, repetimos, o aspecto mais relevante sob o ponto de vista que. fundamentalmente nos interessa. Bastaria, entretanto, paia pôr o termo em posição secundária, se outra palavra surgisse com um significado mais especificamente definidor, como na realidade acontece
Se o aspecto que. acabamos de analisar pode ser considerado de menor vulto, já o mesmo não acontece quando se impõe de uma forma superior o carácter restritivo, que tantas vezes diminui o significado genérico desta palavra no sentido geográfico. A cada passo a utilizamos para designar pequenos grupos regionais o povo da Madeira, o povo do Minho e, até mais limitadamente, o povo de qualquer lugarejo ou povoação
Tais acepções não excluem, antes se acumulam com o seu valor de. generalidade Ë certo Chamo, porém, a atenção para este conceito cumulativo de generalização e particularização para sublinhar que ele confere à palavra este carácter dúbio e impreciso que a desaconselha, e que esta tendência para circunscrever a palavra num âmbito antropogeográfico mais limitado oferece já mais importantes contra-indicações, particularmente em face d« uma geografia política tão desagregada como a nossa.
De facto, ao falar-se no povo português, a sugestão mais próxima é a da parte da população circunscrita a metrópole e ilhas adjacentes e aos seus descendentes nas províncias de além-mar Nesta extensão, porém, influem já circunstancias de ordem racial e ainda, de certa maneira, históricas É que elas não contêm povos de grupos étnicos diferentes, anteriores ao seu descobrimento Eram ilhas desertas, que se encontram ocupadas pelos descendentes do povo que primeiro as descobriu e ocupou
Aqui se aliam de algum modo e sub-reptíciamente na mesma palavra aspectos comuns ao vocábulo «povo» e ao termo «raça», de que pretendemos fugir.
Não faltam os que, sobretudo no estrangeiro, ao falar-se no povo português são levados por força subconsciente desta noção histórica, aliada a restrição geográfica relativa de que nos ocupámos, a pensar naquele povo de descobridores já existente antes dos descobrimentos e que partiu do Portugal primitivo, ainda restituo ao continente, para descobrir e estabelecer fraternal contacto com povos diferentes dos mundos de além-mar. Mais uma vez o factor histórico intervém no valor da palavra. Não faltarão exemplos na nossa literatura histórica dos descobrimentos e conquistas do emprego da palavra «povo» no sentido restritivo que diferencia os povos das descobertas, opondo-os, embora em sentido meramente descritivo, ao povo português E isto, Srs. Deputados, é já um caso a meu ver muito seno A nossa literatura histórica e corrente está cheia destas diferenciações, que ao fim e ao cabo estabelecem, mais ou menos sub-reptíciamente, uma certa identidade entre o significado da palavra «povo» e o da palavra «raça» E aí estamos nós a modificar um termo da Constituição para o substituir por outro que é susceptível, mais ou menos flagrantemente, de iguais reparos.
É por esta razão que, embora a palavra possa autorizar-se em muitos casos, até em linguagem etnológica, carece no caso em discussão daquele valor que a ponha a salvo dos senões de ordem psicológica filològicamente classificados entre os elementos ideológicos da glotologia
Concedo que se possa defender a acepção que se propõe Mas o mal consiste justamente na necessidade de defesa A palavra escolhida deve prescindir de defesa, por ser insusceptível de provocar confusões, embora haja de explicar-se quando se propõe.
E isto o que acontece com a expressão «comunidade portuguesa», que nos sugere justamente a unidade na diversidade E são justamente estas duas ideias o que se pretende significar. Estas duas ideias que não estão implícitas na palavra «povo», que sugere uma unidade de elementos menos diferenciados.
Sim A palavra «povo», embora defensável, é na verdade imprecisa, vaga, ao mesmo tempo que mais limitada para sugerir, dentro de uma nação tão dispersa como a Nação Portuguesa, aquela associação de povos que- se reúnem para formar uma comunidade plorirracial
Preferi a expressão «comunidade portuguesa» paia fusar mais explicitamente a consideração do Estado por todos os povos do Império, deixando subentendida, mas bem expressa, a presença de todos eles no espírito do artigo 12 º da Constituição
Foi com este mesmo espírito que o Presidente do Conselho falou na «conveniência inter-racial», que o actual Ministro do Ultramar se referiu a uma associação de raças» e que o estadista Prof. Paulo Cunha, empregando o próprio teimo proposto, falou na «comunidade plurirracial».
Depois disto, em nome da verdade e da coerência, haveremos de pôr em concordância as afirmações dos nossos estadistas com a letra da nossa Constituição e de obedecer a premente necessidade política de subs-