1906 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 74
nos planos possíveis da época e mandado executar há 200 anos pelo alvará régio de 2 de Abril de 1761, de que transcrevo o seguinte: «... todos os meus vassalos nascidos na Índia Oriental, e domínios que tenho na Ásia Portuguesa, sendo cristãos baptizados, e não tendo outra inabilidade de direito, gozem das mesmas honras, preeminências, prerrogativas e privilégios de que gozam os naturais destes Reinos, sem a menor diferença, havendo-os desde logo não só por habilitados para todas as honras, dignidade», empregos, postos, ofícios e jurisdições deles, mas recomendando muito seriamente aos vice-reis do mesmo Estado, e ministros e oficiais dele, que para as sobreditas honras, dignidades, empregos, postos e ofícios atendam sempre nos concursos, com preferência, os naturais das respectivas terras, mostrando-se capazes sob pena de que do contrário me darei por muito mal servido, e lho estranharei como achar justo, conforme a exigência dos casos».
Eis a resposta que há dois séculos dava o nosso rei, em regime absoluto e cesarista, e numa administração que na metrópole era centralizada ao máximo, ao problema dos serviços e quadros no ultramar, pensando acertadamente que a unidade nacional se realiza na consciência dos cidadãos pela justiça e pela verdade das coisas menores, que são os interesses concretos da vida corrente
em tempo, lugar e pessoa.
Esta política não se limitou, porém, à Índia, e em plano, mais modesto, e por isso tão realista, estendeu-se a todo o ultramar.
Com efeito, passou no dia 19 de Janeiro, véspera de S. Sebastião, orago da fortaleza da ilha de Moçambique, o 2.º centenário da instalação do Senado da Câmara naquela praça, que naquele dia recebeu seus foros de vila, com os privilégios das vilas do Reino, em conformidade com uma Carta Régia de 7 de Maio de 1761, que dá execução à instrução 43 de outra carta régia da mesma data, que constitui a Carta Orgânica outorgada à Capitania Geral dos Estados de Moçambique, nove anos depois de erigida em governo próprio.
O artigo 44 da mesma instrução manda «procurar erigir em vilas todos os portos- e povoações» dos vários distritos, «porque do governo civil e económico das câmaras delas resultarão efeitos tão úteis como são /.../ reduzirem-se os habitantes das mesmas vilas e seus termos à sociedade civil /.../ vierem os mesmos respectivos moradores na união cristã /.../ de sorte que quantos foram os gentios e cafres por vós civilizados, tantos serão os cristãos atraídos ao grémio da Santa Madre Igreja».
Esta política, que em torno das realidades económico-sociais do município parte da associação dos interesses de pessoas civilizacionalmente distanciadas, para a integração global em torno de fins ideais assegurados pela espiritualidade dos superiores valores humanos do cristianismo, foi mandada executar em Moçambique nos- termos determinados ao governador e capitão-general do Grão-Pará e Maranhão para a criação da nova capitania de S. José do llio Negro pelas Cartas Eégias de 3 de Março de 1755, numa das quais se declara convir ao bem comum dos vassalos moradores no referido Estado «se aumente o número dos fiéis alumiados da Luz do Evangelho, pelo próprio meio da multiplicação das povoações civis e decorosas para que atraindo a fé os racionais que vivem nos vastos sertões do mesmo Estado, separados da nossa Santa Fé Católica, e até dos ditames da mesma natureza; e achando alguns deles na observância das Leis Divinas e Humanas, socorro e descanço temporal e eterno, sirvam de estímulo aos mais que ficarem nos matos para que imitando tão saudáveis exemplos busquem os mesmos benefícios».
Atente-se na permanência dos princípios e na constância dos problemas, convertidas em actuais as formas antigas. O que se acha em foco é o problema da integração do homem pela educação do espírito.
Para isso, foram estas instruções brasileiras transmitidas, por cópia, ao Governo de Moçambique, com a sugestão de 29 de Maio de 1761, para se criar na extinta Casa dos Jesuítas, onde foi depois o Palácio dos Capitães-Generais em Moçambique, «um colégio ou seminário de estudos em que se instruíssem os seus respectivos naturais, para que, depois de ordenados, pudessem aplicar-se ao ministério de párocos e missionários, como se está praticando nas ilhas de S. Tomé e Príncipe e dos reinos de Angola». E foram acompanhadas da «minuta para os Estatutos do Colégio de Meninos e Clérigos Naturais do Oriente, que Sua Magestade manda restabelecer na cidade de Goa», moldado no Colégio dos Nobres da Corte e Cidade de Lisboa, cujos estatutos também se remeteram. Instituía-se o ensino das artes em plano médio, a que se chama hoje ensino liceal.
A sugestão de 29 de Maio de 1761, que manda procurar os meios de execução deste plano de promoção social, expõe claramente a política a seguir ao dizer: «Para que possa ter melhor efeito a referida resolução deve V. S.ª fazer passar ao conhecimento das gentes que os naturais nascidos naquele Estado, ou sejam totalmente brancos ou ainda mestiços, serão hábeis, como o devem ser, para todas as honras, dignidades e empregos de que são capazes os naturais destes Reinos; e que os pretos que forem forros, livres e instruídos nas artes e ciências e tiverem boas informações de vida e costumes, se pratique o mesmo que se está praticando nos referidos reinos de Angola e ilhas de S. Tomé e Príncipe, onde os párocos, cónegos e dignidade são mais ordinariamente clérigos pretos naturais do país; sendo certo que estes serão sempre os mais próprios, e mais bem aceites dos povos, como seus naturais».
A Câmara terá entendido que o que está em evidência nesta doutrina não é o negro ser votado a padre, mas a importância do seu valor como factor de integração do próprio negro.
Com o tempo foi-se a doutrina aperfeiçoando, até se afirmar completamente em 1774. Aliás, esta política de promoção social surgiu pela necessidade de preencher o vazio criado pela expulsão dos jesuítas, detentores da maior parte dos meios de educação no ultramar. Pelo que respeita à Índia, foi enorme o êxito desta política, que abria perspectivas novas aos educandos nela formados.
Mas, como sempre acontece, antes de se transformarem em realidades novas, chocam-se as perspectivas com as realidades velhas, situação em que, aliás, nos encontramos precisamente na actualidade em Moçambique, ou porque o reajustamento não é fácil nem tão rápido como a urgência dos interesses individuais, ou porque não estão as mentalidades viradas convictamente à nova ordem.
E aconteceu que na Índia e no Brasil, e por via do anticolonialismo que a fermentação revolucionária da França alimentava, nasceram desilusões e autodecepções que se volveram em estados de agressividade, tensivos e emocionais, pela frustração de aspirações sedimentadas nos espíritos pela esperança. Não sofre dúvidas que foram atentamente considerados os problemas geradores de tais situações, no século XVIII, e penso que se terá concluído, como diz um psicólogo de hoje: «Uma discussão franca e leal destes problemas dá um resultado inicial importante, isto é, permite um exame mais sereno de tudo o que é matéria de preocupação».
O que é certo é que na instrução quarta, «sobre os meios e modos de fazer cessar os distúrbios e os clamores con-