10 DE DEZEMBRO DE 1964 4053
despesas de organização, ficar a Misericórdia de Lisboa com dois terços do seu terço líquido, a título empresarial, e destinar a Moçambique um terço apenas deste lucro líquido. E evidente que a garantia do empreendimento tem valor económico, suscita a procura, a Misericórdia de Lisboa tem altíssimo valor e nome firmado no Mundo desde o século XVI, mas o seu ganho de empresa parece exagerado, mesmo considerando a amplitude e, portanto, o interesse que ela dá à Lotaria Nacional. Os quinhões parecem invertidos, e por isso um terço do seu terço líquido, de compensação pelos valores não monetários do serviço que presta a Moçambique, afigura-se-me a proporção justa. E, por mais, veja-se: considerando que a operação da Lotaria Nacional na província comporta liquidamente 36 unidades de conta ao ano, cabem 12 ao Tesouro da metrópole, 12 ao Tesouro da província e 12 à Misericórdia de Lisboa, que por sua vez investe na província um terço deste terço, ou sejam 4 unidades, e lucra 8, se separar Angola de Moçambique, pormenor em que o decreto não é claro, porque permite à Misericórdia somar os quinhões ultramarinos e investir em Angola e Moçambique, por conjunto, um terço deles somados, e portanto menos numa das províncias do que lhe caberia por contabilização separada.
Porém, o que neste decreto oferece maior estranheza é estabelecer-se que a Misericórdia de Lisboa aplicará, ela, em actividades de assistência em Angola e Moçambique o terço dos seus quinhões ultramarinos. Claro que ninguém contesta a ampla experiência da Misericórdia de Lisboa em todas as modalidades assistenciais, nem a virtude da sua acção ou o modelo dos seus serviços. A Misericórdia de Lisboa é uma instituição respeitada no coração de todos os portugueses, onde quer que vivam, tanto que há em Moçambique interesse, simpatia e entusiasmo pelo estabelecimento, na província, de formas assistenciais nacionalmente consagradas pela benemérita e perseverante acção da Misericórdia de Lisboa. Tenho presente a Casa Pia, que é uma instituição que se deseja ver em Moçambique, pela sua premente necessidade. Tenho presente a assistência e educação dos deficientes e diminuídos, e dos delinquentes juvenis, e tanta coisa que na província ainda não temos e precisamos, e para as quais precisamos, desejamos e agradecemos a colaboração e a experiência da Santa Casa de Lisboa.
Todavia, porque na minha província existe um serviço público para o efeito, penso que seria mais elegante transferir para esse serviço tal competência, em colaboração com a Misericórdia. Bem sei que esta não irá sobrepor-se arbitrariamente, e isto depende muito dos entendimentos entre os homens, mas é incontestável que a sobreposição e a consequente invasão de atribuições está legalmente estabelecida, o que me parece deselegante de qualquer forma, e especialmente entre instituições de alto nível moral. A Assistência Pública de Moçambique é uma instituição também consagrada na província pelo respeito de toda a gente, e não tem conto a caridade que exerce no limite dos seus minguados recursos. Não fala agora a minha total dedicação à instituição, porque tudo o que sou lhe devo. Afirmo apenas porque é verdade. Como esta parte do decreto das lotarias ainda não entrou em cumprimento é fácil proceder-se à elegante correcção necessária.
Explanei-me mais do que desejava na matéria, porque quando se proceder à extensão do Totobola a Moçambique (que, como disse, a província levianamente recusou há anos, com desgosto da Assistência Pública, da Misericórdia, do governador-geral, do Ministro da Saúde, do próprio Presidente do Conselho, para afinal passar a jogar, como joga, por interpostas pessoas por correio), há que
aplicar ao regime do Totobola um esquema idêntico ao que se preconiza e parece assentar numa razoabilidade aceitável. O Totobola é o único meio viável de financiar as despesas com as competições desportivas de âmbito nacional. O Totobola metropolitano cobriria os encargos com as deslocações metropolitanas; o de Moçambique cobriria as deslocações dos clubes e organizações da província, na província ou fora dela. Creio que ninguém duvidará da vantagem de se corrigir o rumo da vida desportiva nacional e o quanto esta nova forma de convívio pode valiosamente contribuir para a coesão social da Nação.
Antes de acabar aproveito a oportunidade para abordar outro problema para o qual fui solicitado em Lourenço Marques por antigos companheiros meus da organização. Trata-se de obter do Governo que seja revogada a legislação que impede a existência em Moçambique da Associação dos Escuteiros de Portugal, que tem na metrópole mais de meio século de existência e tinha em Lourenço Marques um dos seus primeiros grupos, o n.º 10.
O escutismo português nasceu em Macau e filiou-se na organização mundial logo que em 1913 se estabeleceu em Lisboa a Associação dos Escuteiros de Portugal. O escutismo é um movimento para a educação da juventude sob o lema de mens sana in corpore sano. Assenta na superioridade moral do homem, pratica a fraternidade entre as pessoas, os povos e as raças, recomenda a prática do bem, defende as virtudes cívicas, a liberdade religiosa e uma vida sã. Em todas as nações a organização é saudàvelmente nacionalista, sem ser sectária. No meu grupo de escuteiros em Lourenço Marques, o n.º 68, vivia-se o orgulho de ser português, sob a dedicada chefia do capitão Ismael Jorge, professor de Educação Física no liceu e comissário provincial dos escuteiros em Moçambique.
Quando se instituiu a Mocidade Portuguesa em Moçambique foi inexplicável e incrivelmente extinto o escutismo. Até hoje. Descobriram, porém os prelados da província que ao abrigo da Concordata e do Acordo Missionário podiam restaurar o escutismo católico do Corpo Nacional de Escutas, e assim fizeram, limitando-se a comunicar o facto à entidade provincial competente. O Governo da província ficou surpreendido, mas também se não deu por achado; limitou-se a sorrir. Também não havia outra coisa a fazer, porque dali não viria mal ao Mundo. E era rigorosamente legal.
Desta forma ficou discriminada a Associação dos Escuteiros de Portugal, que os antigos escuteiros querem restabelecer na província. Tudo quanto deles se pode dizer é que, lançados no torvelinho da vida como homens, nunca nenhum traiu Portugal, e hoje, embranquecidos e cheios de filhos e netos, pedem a quem quer que seja meças do seu portuguesismo, como no tempo em que, ainda garotos, juraram para toda a vida, escuteiros que sempre ficaram, "cumprir com os deveres com a sua Pátria".
O escutismo foi vitima de uma injustiça e pede uma reparação. Não há razão alguma de qualquer ordem para que subsista a prepotência que se praticou. Estamos certos de que seremos atendidos, porque temos por nós a razão moral, que é uma força viva e inquebrável. Aqui fica, portanto, o meu apelo, em primeiro lugar ao Sr. Almirante Henrique Tenreiro, ilustre presidente da Associação dos Escuteiros de Portugal e nosso distinto colega, para representar ao Governo nesse sentido. Os antigos escuteiros de Moçambique sabem que S. Ex.ª os ajudará a restaurar o movimento na província, e por isso aqui lhe deixo o pedido que nesse sentido me fizeram, porque ninguém melhor do que S. Exª. pode avaliar da justiça na causa. Em segundo lugar, apelo para a Mocidade Portuguesa, concretamente para o Sr. Tenente-Coronel Gomes Beça,