26 DE NOVEMBRO DE 1966 758-(9)
Divergem, todavia, no ponto de partida. Com efeito, enquanto o projecto governamental parte do princípio tradicional da res nullius, o projecto parlamentar parte do princípio germânico.
Quer um, quer outro, porém, não adoptam o princípio eleito em toda a sua rigidez.
O projecto do Governo introduz no sistema romanista várias correcções, já proibindo o exercício da caça em alguns locais, em nome da defesa da propriedade e da segurança das pessoas e de certas actividades, já, sobretudo, admitindo as reservas de caça, através das quais fica interdita a caça à generalidade dos caçadores dentro dos limites dos respectivos terrenos.
O projecto parlamentar, por sua vez, avisadamente, também não atribui indiscriminadamente a propriedade da caça aos donos das terras, mas sómente àqueles que, em prédios de área superior a 50 ha, mostrem ter providenciado no sentido da protecção e fomento das espécies cinegéticas, através de repovoamento, do combate aos animais daninhos e de eficiente fiscalização.
Dentro desta orientação, todas as outras terras - as de área inferior, sem valor, de per si, como terrenos de caça, ou de área superior, mas não utilizadas devidamente pelos seus donos - restarão livres para o exercício da caça. E, como é de esperar que em muitos casos assim aconteça, por desinteresse ou inércia dos proprietários, teríamos largas zonas do País onde seria livre o direito de caçar.
Mas se é realmente assim, então nós poderemos chegar a resultados idênticos sem abandonar o sistema tradicional: bastará que se institua um regime de reservas de caça suficientemente amplo e equilibrado, por forma que possa satisfazer-se o desejo e o interesse legítimos de todos os que na realidade estão dispostos a reservar ou contar os seus terrenos.
10. Há, contudo, um outro aspecto em que o projecto parlamentar leva vantagem sobre o projecto de proposta de lei: justamente aquele em que aponta a caça como importante factor de valorização das terras ingratas, insusceptíveis de cultura rendável.
À importância da caça sob este aspecto económico já aludimos no § 2.º Bestará tê-lo presente para na altura própria, quando se tratar das preferências a observar na concessão das reservas, lhe dar o devido relevo.
Já quanto ao aspecto da projecção da caça no plano turístico os dois projectos se equivalem em intenções.
E o mesmo poderá dizer-se quanto à preocupação do repovoamento, bem como a de reclamar sanções mais pesadas e mais adequadas para as infracções à disciplina da caça.
11. Tudo ponderado, a Câmara Corporativa dá a sua aprovação na generalidade aos dois projectos, atentas a sua oportunidade e louvável intenção de resolver os prementes problemas da caça. Na especialidade, porém, como adiante se verá, a preferência da Câmara vai mais para o projecto do Governo, não apenas porque ele se integra dentro do princípio tradicional da liberdade de caçar, que se entende dever manter, com as adequadas limitações, mas também porque o projecto parlamentar, dada a estrutura que apresenta, não dispensaria a publicação, para além da lei em que porventura viesse a transformar-se, de uma outra lei para fixar princípios sobre matérias fundamentais que nele não são contempladas, ou então remetê-las para um simples regulamento, o que não se afigura aconselhável.
Diversamente, o projecto de proposta de lei apresenta-se com uma estruturação aproveitável em grande parte, sem prejuízo de se lhe introduzirem alterações que outros pontos de vista e outras reflexões aconselham.
Mas seria acto de menos justiça não reconhecer aqui os méritos da iniciativa do projecto de lei nem prestar a devida homenagem ao seu autor.
II
Exame na especialidade
A) Do projecto de proposta de lei
§ 1.º Exercício da caça
1) Conceito de caça
12. É inteiramente compreensível que numa lei sobre caça se queira dar antes de mais uma noção de caça.
Assim se procedeu de resto na lei sobre pesca - Lei n.º 2097, de 6 de Junho de 1959 - em cuja base II se define o que deve entender-se por pesca (22).
Caça, em sentido geral, compreende não só a acção de caçar como também os animais bravios a que esta acção se dirige, antes e depois de caçados, os quais constituem o seu objecto (29).
É no primeiro sentido que a caça é tomada quando se pretende definir esta juridicamente.
A base I do projecto em apreciação contém, no n.º l, a seguinte noção: «Caça é a ocupação ou apreensão de animais bravios que se encontram no estado de liberdade natural e que não vivem habitualmente sob as águas».
Esta definição afigura-se correcta e corresponde fundamentalmente à que se contém no Código Civil vigente (artigos 383.º e 384.º) e no projecto definitivo do novo Código Civil, cujas disposições já foram transcritas neste parecer (n.º 7) (30).
Juridicamente, a caça é um acto de ocupação de uma coisa que não pertence a ninguém (res nullius). Por isso, não podem ser objecto de caça os animais domésticos nem os selvagens que tenham sido anteriormente capturados e reduzidos a propriedade privada (31).
(28) Para os efeitos desta lei, considera-se pesca não só a captura de peixes e outras espécies aquícolas, mas também a prática de quaisquer actos conducentes ao mesmo fim, quando realizados nas águas referidas na base antecedente ou nas margens delas (n.º 1 da base II).
(29) Na língua francesa há duas palavras distintas para expressar estes diversos sentidos: gibier (espécies cinegéticas) e chasse (acção de caçar).
Em Itália a palavra caceia exprime os dois sentidos, mas em relação aos animais bravios usa-se geralmente a palavra selvaggina.
Paralelamente a este duplo sentido, a caça apresenta aspectos que reclamam a disciplina de duas ordens de normas jurídicas: de direito privado e de direito público.
São de direito privado as normas que disciplinam as relações entre o direito de caçar e o direito de propriedade, que atribuem a propriedade de caça, etc.
São de direito público as normas que estabelecem restrições ao direito de caçar, quer no interesse da propriedade, quer no interesse da segurança e tranquilidade das pessoas, quer no interesse da conservação da caça, como aquelas que qualificam e punem as infracções à disciplina da caça, as que estabelecem e fixam taxas pela actividade venatória, etc.
(30) E também o conceito da autoria do Prof. Pires de Lima, que se lê na recente Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. IV, p. 352: «Apreensão de animais bravios que vivem em liberdade natural».
(31) Entende-se por animais selvagens «Omnia igitur anima-lia quae terra, mar i, coelo capiuntur id est ferae bestiae et volucrps. pisoes capientium funt» (Digesto).