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DIARIO DAS SESSÕES N.º 197
balho de formação, que se opera lentamente no segredo das almas jovens e cujos resultados não poderão avaliar-se, a não ser no tempo, e nunca, ainda assim, de forma definitiva e espectacular.
Mas esta razão soma-se ainda a outra para mim decisiva: é que, no momento da vida política portuguesa que estamos a atravessar, mais ainda do que fazer o balanço das realizações e das tarefas em curso, creio indispensável fortalecer e fundamentar, no exemplo moral dos melhores que nos precederam, a nossa decisão de continuar dignamente a obra nacional iniciada há quarenta anos.
Permitam-se, pois, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que ao prestar nesta Câmara a minha modesta homenagem à incansável obreira da Mocidade Portuguesa Feminina, eu evoque, mais do que as suas raras qualidades de organização e de trabalho, mais do que os resultados de um labor de trinta anos, o seu perfil moral e político —efígie que ficará gravada, como exemplo e estímulo, na consciência das gerações que ela ajudou a formar.
Define-se esse perfil por alguns traços fundamentais, linhas mestras de uma acção e de um destino: a fé sem sombras nos ideais que serviu; a dedicação abnegada pelo seu cargo; a fidelidade ao Regime, intacta através dos anos e das modas.
Ora, creio que estas são três virtudes particularmente necessárias na hora que vivemos. Necessárias, mas difíceis e ameaçadas, porque exigem rigorosas opções, um quase ascetismo, a que vejo as pessoas cada vez menos inclinadas, uma renúncia corajosa ao êxito fácil, ao favor da multidão leviana e ávida de mudanças.
Parecerá, porventura, estranho que se fale como de coisas distintas em fé nos ideais e em fidelidade ao Regime. Eu, porém, faço questão de distinguir fé e fidelidade. Nascidas da mesma raiz, estas duas palavras exprimem na realidade conceitos diferentes, embora complementares. A fé é um dom gratuito, um impulso do coração e da vontade, sem dependência necessária da razão; é uma convicção tão profunda e íntima que as suas raízes se perdem no subsolo do instintivo, ao mesmo tempo que os seus ramos se estendem a roçar o transcendente.
Quando Salazar diz: «Não discutimos Deus, não discutimos a Pátria» — é a sua fé (e oxalá seja a nossa) que ele define e proclama.
Pois é esta fé, assim inabalável e límpida, que me parece mais necessario hoje do que nunca revigorar. Vejo com inquietação proliferar à nossa volta, nesta segunda metade do século, um sem-número de credos e crendices, de mitos e preconceitos que vegetam no terreno baldio deixado pela ausência da verdadeira fé. Desde o anarquismo demolidor ao tecnicismo, e do..progressismo às seitas esotéricas, à magia, à astrologia, tudo serve para preencher esse vazio.
Mas o que mais inquieta é ver a tibieza, o cepticismo e até a negação dominarem o espírito de muitos que, por inércia talvez, continuam a servir os princípios que na prática desacreditam. Vejo duvidar da validade e da legitimidade de tudo quanto foi fundamentado da nossa história de nação cristã e independente; vejo pôr em causa, e às vezes negar-se a si mesma, a autoridade sob qualquer das suas formas — a eclesiástica, a política, a familiar; vejo, e é talvez o mais grave, insinuar-se na vida quotidiana, sob o rosto da tolerância e da liberalização, uma lenta mas crescente vaga de agnosticismo e de amoralidade. E pergunto a mim própria se é este o melhor clima para formar homens capazes de resistirem aos ataques do Mal, que fora, e já dentro, das fronteiras se organiza para nos destruir. Ou será que o Mal já não é Mal? Ou que a destruição nos aparece como fatalidade inelutável?
E preciso tocar a reunir, reagrupar os que não perderam a fé, pois, embora dom particular concedido a cada alma, é na comunidade, melhor, na comunhão dos fiéis, que a fé se mantém viva e operante. Porque, de outro modo, isolados na massa apática e impotentes contra a lenta inundação de erros e negações, esses que ainda têm a fé arriscam-se perdê-la, ou, se isso não acontecer, a transferi-la para outros ideais menos injuriados e melhor servidos.
Porque uma coisa é fé, outra fidelidade. A fé sem fidelidade è um absurdo; mas o> absurdo è bem humano. Há, com efeito,, uma fé desesperada, que se volta sobre si mesma e renega tudo em que acreditou, e por despeito e decepção se atira para os braços dos seus adversários.
E, sem dúvida, lamentável que isto aconteça. Mas pior ainda é o espectáculo charlatanesco de uma fé aparente a palavrosa, pródiga em tiradas de retórica, mas desprovida de autêntica devoção. Pois sem obras, disse-o Deus, a Fé é morta. «Pelas obras os conhecereis.»
E aqui toco no segundo traço do perfil que esbocei ao referir-me à , Sr.ª D. Maria Guardiola. A sua; fé perfeita traduziu-se sempre em obras, foi uma fé vivida: em abnegação, pobreza voluntária, oferta diária e total do seu tempo, das suas forças físicas, da sua capacidade intelectual.
Quando vemos à nossa volta sobrepor a cada instante o interesse privado ao bem comum; pregar o sacrifício para os outros e procurar o benefício para si; proclamar os ideais e traí-los na acção — favorecendo os incapazes, só porque eles são ao mesmo tempo os únicos capazes de assistir aos erros sem os denunciar; quando vemos desperdiçar sem escrúpulos tempo e dinheiro que é do Estado e deixar enredar, na preguiça de uma chefia rotineira, serviços e instituições que foram criados para o bem público— então compreendemos como a dedicação, a pobreza em espírito, o amor à obra, a vontade sincera de acertar e de servir sãs virtudes que, de alto a baixo da escala social, importa restaurar na vida portuguesa.
Vozes: — Muito bem!
A Oradora: — A abnegação é a fé vivida.
E resta-nos a fidelidade. A fidelidade, creio eu, é a fé perseverante, mantida ao longo do tempo e das mudanças; é a fé que resiste às decepções e ressentimentos pessoais, como às aliciantes solicitações revisionistas e às ameaças de retaliação. Já não é como' a fé inicial, o impulso, a iluminação, o dom gratuito. Pressupõe uma deliberação livre, uma escassez por vezes dura e uma constância de memória.
Assim como pode haver fé sem fidelidade, há também — e é triste e amarga coisa de ver ou de experimentar — uma fidelidade sem fé. É a posição daqueles que no seu foro íntimo descrêem já dos ideais ou dos princípios que abraçaram — e isso muitas vezes por culpa de quem não soube encarnar ou servir esses princípios—, mas que, por respeito de si próprios, por pudor de se desdizerem, continuam acorrentados a um credo que já nada lhes diz. Deus nos livre de cair nesta desolada e solitária sujeição, que nenhuma chama interior vivifica.
Vozes: —Muito bem!
A Oradora: — Mas quando a fidelidade tem a iluminá-la por dentro uma crença inabalável na ideia que por uma vez se abraçou, então a doutrina que conta entre os seus