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2070 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 103

Foi, aliás, esta excessiva confiança na inata bondade e clarividência dos homens que fez soçobrar a magnanimidade das intenções dos doutrinadores da nossa
República, como já antes fizera perderem-se em lutas políticas de um reduzido escol de intelectuais os sonhos do liberalismo, não porque alguém não houvesse logo avisadamente lembrado que em dois grandes escolhos se perde a liberdade: na tibieza com que se defende ou na demasia com que dela se goza.
Creio que com muita razão o historiador contemporâneo Arnold Toynbee chama à prudência aqueles que sonham com bruscas transformações sociais, lembrando que uma das fraquezas incómodas e dolorosas do ser humano é a brecha que existe dentro de nós entre as camadas consciente e inconsciente da nossa personalidade ou, como ele dizia, haver sido, através dos séculos, a cabeça sempre mais rápida a mover-se do que o coração.
Ao apreciar na generalidade este projecto não penso se são muitos ou poucos os preceitos cuja aceitação me parece agora oportuna; penso, sobretudo, em que as ideias generosas, abertas e esclarecidas que o informam têm de estar presentes neste debate, pois elas serão, sem qualquer dúvida, cada vez mais importantes para a construção do nosso futuro.
O projecto n.º 7/X traz como nota dominante o seu artigo 1.º, consagrando a invocação do nome de Deus na nossa Constituição. Esta matéria ofusca naturalmente todo o seu restante conteúdo. Pessoalmente não tenho qualquer objecção a fazer à proposta, até porque entendo que uma noção não é apenas um aglomerado de indivíduos, mas um corpo organizado, que, como tal, tem também a sua vida, tem também a sua alma. Assim, poderá e deverá render, a seu modo, culto ao Criador.
Simplesmente, poderá perguntar-se se será conveniente, ou se será mesmo razoável, que em textos como estes, que se destinam essencialmente a regular as relações de convivência entre os homens, a estabelecer, segundo a velha linguagem, os direitos do cidadão e os deveres do súbdito, cada um de nós busque imprimir os seus conceitos filosóficos ou religiosos, para além do que seja indispensável à compreensão e à formulação objectiva dos seus preceitos.
A seguir-se tal critério, por que não levá-lo também a textos de menor alcance, que regulam a vida de comunidades menores dentro da Nação e que, por serem mais pequenas ou de natureza mais humilde, não estão excluídas do dever ou do privilégio de prestar culto ao Criador? Poderão dar-se diversas respostas a estas perguntas. Para defender a tese dos proponentes poderia reproduzir uma argumentação como a usada pelo Presidente Sukarno, da Indonésia, ao discursar perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1960. Dizia ele:
A minha nação inclui os que professam religiões muito diferentes: há maometanos, há cristãos, há budistas e há homens sem religião. Contudo, 80 por cento dos nossos 92 milhões de almas, a nação indonésia, são de sequazes do islamismo. Como consequência disto, e em reconhecimento da unificada diversidade da nossa nação, nós situamos a crença em Deus no frontispício da nossa filosofia de vida. Mesmo aqueles que não têm um deus, na sua ingénita tolerância, reconhecem que a crença no Todo-Poderoso é uma característica da sua nação, e deste modo aceitam este primeiro princípio.
Contudo, o pensamento cristão actual parece raciocinar da outra forma, inclinado como está em acentuar o respeito e a independência das coisas de Deus, evitando que se confundam com as de César.
Talvez por isso o lúcido espírito que foi o cardeal Mercier fez inserir, já há muitas décadas, no Código Social de Malines, esta prudente e desassombrada advertência:

O que se chama, frequentemente, o reinado social de Cristo não consiste na inscrição de Seu nome sagrado à frente da Constituição ide um país ou na colocação da imagem do Sagrado Coração na bandeira nacional. Estes actos exteriores, excelentes em si mesmos e desejáveis, são, hoje em dia, sobretudo, mais uma resultante que uma causa, e o mundo não mudaria só porque a mão forte de um homem viesse realizar autoritariamente esses grandes actos.
O verdadeiro reinado social de Cristo existe quando a sua lei santa, de justiça e de amor, penetra todos os organismos sociais.
O trabalho, o bom trabalho, consiste justamente, em nossos dias, em fazê-la penetrar neles pelos meios mais dignos e também mais adaptados ao estado dos espíritos, à sua fraqueza e às suas possibilidades.
Os autores desta proposta - aos quais desejo naturalmente associar a nobilíssima figura de Leonardo Coimbra - tiveram o inquestionável mérito de uma iniciativa que entendo como um apelo veemente à nossa sociedade, dominada pela economia e pela técnica, a dizer que o homem não é apenas o ser que produz e que consome ou uma peça na engrenagem do Estado, mas que existem nele valores mais altos e que é, afinal, para os preservar ou para os servir que as constituições devem ser feitas.
Assim, embora pensando que a proposta não ofenderia ninguém, creio todavia que a mais ajustada forma de aprová-la será através de adequada redacção dos artigos referentes à liberdade religiosa, como de resto entendeu também a comissão.
Nesta solução encontro uma dupla vantagem: referia-se o nome de Deus, com a dignidade apropriada, nesse capítulo consagrado à liberdade religiosa e
tornava-se mais nítida, para crentes e não crentes, a imagem daquele Ser Supremo que não é só o que recebe o culto de uns, pois é também em nome dele que deve respeitar-se a liberdade de todos.
A proposta do Governo é apresentada com a expressa declaração de ter por base a ideia fundamental de que a estrutura política da Constituição de 1933 deve ser mantida e, na realidade, quer na letra, quer na interpretação dos seus objectivos à luz das declarações do Sr. Presidente do Conselho, ela continua a conformar-se com os mesmos princípios basilares:
Continua a existir um Governo forte, ao qual se não restringiu autoridade e que reiteradamente tem declarado que não abdicará de exercê-la;
Continua a proclamar-se e a fazer-se progredir a organização corporativa da sociedade portuguesa;
Continua a afirmar-se nos textos e a defender-se pelas armas a unidade nacional;
Continua a impor-se a regra da subordinação dos interesses individuais ao bem comum e a acentuá-la até ao escolher a designação do Estado Social para caracterizar um programa de Governo.
Parece, por conseguinte, poder concluir-se que a proposta se não afasta dos postulados políticos postos à consideração do eleitorado quando plebiscitou a Constituição de 1933. Portanto, mesmo para aqueles que porventura