18 DE JUNHO DE 1971 2073
Responsabilidade grave, responsabilidade histórica - tantos e tais são os desafios com que Portugal e os Portugueses hoje em dia se defrontam, não poucos deles postulando opções de natureza política, que se projectam no ordenamento jurídico-constitucional. Responsabilidade à qual cada um de nós, Deputados da Nação, procura corresponder, dando o melhor do seu esforço, em função das suas convicções pessoais e da sua interpretação dos interesses do País, actuais e futuros - em ambiente de são pluralismo, de respeito mútuo, de diálogo aberto1 e construtivo.
Mas carecerá realmente a nossa Constituição de ser revista? E, no caso afirmativo, será este o .momento apropriado para o fazer? Por mim, respondo resolutamente que sim a ambas estas interrogações.
Tal como os homens, as constituições tombem envelhecem. Elas instituem um ânodo de organização da sociedade política que resulta das convicções dominantes no momento da sua elaboração e procura atender a um determinado circunstancialismo do corpo social. Ora, essas convicções alteram-se apreciavelmente com o tempo; e o mesmo também faz sentir a sua acção implacável sobre a situação e as necessidades da sociedade. Parece até que esta função, simultaneamente destruidora e criadora, do tempo se tornou mais palpável no mundo em que vivemos, em permanente e acelerada mutação, quase no fim do terceiro quartel do século xx.
O legislador constituinte ide 1933 tinha perante si um país de características marcadamente agrárias, estável, politicamente portanto conservador, traumatizado por décadas de instabilidade e insuficiência governativa. Por seu turno, predominavam nessa época, numa ou noutra das suas formulações - comunismo e fascismo -, concepções de origem hegeliana quanto às relações do indivíduo com a sociedade, subordinando aquele integralmente à realização de fins colectivos. Descria-se também do parlamentarismo, com as suas instituições anexas, que era acusado de lançar as nações na desordem e permitir o avanço do adversário comunista. Procurava-se superar, no plano económico, os exageros do liberalismo individualista.
Deste quadro social e ideológico e da situação de equilíbrio de forças políticas que veio a resultar da ditadura consequente ao pronunciamento militar de 28 de Maio de 1926 nasceu ,a Constituição de 1933 e o regime por ela instituído: autoritário, antidemocrático, antiparlamentar, corporativo.
Quanto ao ultramar, o Estado Novo dedicou-lhe a primeira das suas leis constitucionais: o Acto Colonial de 1980. Numa era em que quase todos os Estados europeus, de uma forma ou de outra, tinham ou sonharam ter extensas colónias em África e na Ásia, estruturou este diploma o Império Colonial Português.
Julgo não serem precisos,. Sr. Presidente, raciocínios complicados e (exposições exaustivas para comprovar a inadequação deste conteúdo jurídico-constitucional ao estado de coisas existente hoje no nosso país " no Mundo. Inadequação que mais se acentua ao considerarmos que se trata agora 4e legislar para um futuro de dez anos, cujas coordenadas haveremos de perscrutar atentamente. E facto que a nossa Constituição, ao longo dos seus quase quarenta anos de vigência, tem sido revista várias vezes. Mas estas sucessivas revisões, para além de terem operado a integração, em 1951, do Acto Colonial - devidamente expurgado de alguns conceitos julgados chocantes para o ambiente internacional de então - no texto da lei fundamental, apenas visaram acentuar o autoritarismo u que me referi e garantir o regime contra a eventualidade de um "golpe de Estado constitucional".
A pouco e pouco o Governo foi conseguindo ampliar as suas faculdades legislativas, em detrimento da Assembleia Nacional, até se consagrar, em 1945, como órgão legislativo normal; a esta última ficou a caber o papel de órgão legislativo de excepção, sem contar com umas vagas funções de sugestão e crítica, que melhor a configuram como um conselho de governo. Quanto à defesa do Regime, veio a culminar, em 1959, com a abolição do sufrágio directo para a eleição do Chefe do Estado.
Parece-me conveniente esclarecer, desde já, Sr. Presidente, para tranquilidade de alguns espíritos mais propensos a alarmes, que não advogo uma revisão de alto a baixo da Constituição de 1933, o que equivaleria a uma tentativa, ou pelo menos a uma proposta, de uma outra espécie de "golpe de Estado constitucional. Não, não se trata agora de fazer uma nova Constituição, mas apenas de corrigir e melhorar aquela que já temos.
Porque a Constituição de 1933 não faltam soluções políticas felizes que importa certamente conservar. No número delas se encontra a concepção básica do Governo, como órgão da soberania independente da Assembleia Nacional, que responde à dificuldade, até aqui, entre nós, comprovada, de impedir a proliferação partidária e, consequentemente, a instabilidade governativa. Também é de reter, correlativamente, o sistema de exclusiva responsabilidade do Governo perante o Presidente da República, que historicamente se filia na praxe efectiva do constitucionalismo monárquico. E o mesmo direi ainda da dissociação das funções do Chefe do Estado e do Chefe do Governo, este último responsável directo "pela condução política do País, aquele investido de um verdadeiro poder moderador, indispensável, como de experiência sabemos, em momentos de crise - o presidencialismo de chanceler, afinal, que o nosso legislador constituinte foi buscar à Constituição alemã de Weimar, de 1919, mas que não em noção em absoluto desconhecida da Carta Constitucional.
Por outro lado, há aspectos da Constituição que o que interessa é, antes de mais, vivificar e ampliar, como acontece com alguns pontos do programa contido na parte i. Finalmente, temas há que não vale a pena pôr em causa por agora: é o que se passa com o sistema corporativo, do qual se está a procurar tirar partido, fazendo-o funcionar em moldes renovados.
Dentro das coordenadas básicas da Constituição de 1933, temos, porém, Sr. Presidente, de abordar corajosamente matérias de importância vital. A presente revisão há-de ser ampla, será até com certeza a mais ampla das que Até aqui foram feitas, porque os ajustamentos a efectuar nas nossas instituições políticas, por imperativo do condicionalismo presente, são na verdade significativos.
Está com os olhos fitos em nós, constituintes de 1971, um país em circunstâncias bem diferentes das do começo da década de 30.
Acumulam-se factores de transformação social: a industrialização, os movimentos migratórios internos e a emigração vão quebrando, progressivamente, as estruturas tradicionais, que favoreciam atitudes conservadoras. A melhoria do nível cultural e o predomínio dos meios de comunicação maciça predispõem para a participação. Por toda a parte se reconhecem e difundem as consequências da eminente dignidade da pessoa humana, donde decorrem prementes aspirações de justiça social, que correctamente se entende como instrumento de libertação.
Entre a juventude lavram velhas e novas utopias, sintoma mais do que seguro de profunda insatisfação. No ultramar, com evidente relevo para Angola e Moçambique, há sociedades novas, pletóricas de dinamismo e de possibilidades, em pleno surto de desenvolvimento. Nos territórios metropolitanos manifesta-se imperiosa a aspi-