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2076 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 103

Jurídico-constitucional, que é o que agora nos ocupa, será a de dar maior autenticidade e interesse a tal participação, reforçando a competência deste órgão da soberania e garantindo-lhe actuação mais eficaz.

No seu texto primitivo, a Constituição de 1933, negando embora à Assembleia Nacional algumas importantíssimas atribuições, nomeadamente a aprovação do orçamento e, de acordo com a solução presidencialista adoptada, a efectivação da responsabilidade política do Governo, reconhecia-lhe posição de predomínio em matéria legislativa, ainda que restrita à aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos. Ao Governo competia executar as leis elaboradas pela Assembleia Nacional, só podendo substituir-se-lhe, mediante decretos-leis, por virtude de autorização legislativa ou em casos de urgência e necessidade pública. Nesta última hipótese, os decretos-leis deveriam ser submetidos, numa das primeiras cinco sessões seguintes, à ratificação da Assembleia Nacional.

A história desta Câmara, durante o longo consulado de Salazar, é bem a do seu progressivo apagamento. Primeiramente na prática, depois na própria letra do texto constitucional, o Governo transformou-se no órgão legislativo normal; restringiu-se a iniciativa legislativa dos Deputados; limitaram-se os casos de ratificação dos decretos-leis. Nem sequer a reserva de lei estabelecida no artigo 93.º da Constituição foi sistematicamente respeitada, vindo o Governo a dispor, com flagrante inconstitucionalidade orgânica, em matérias tão importantes como a organização dos tribunais.

Julgo dever sublinhar que algumas das alterações ao estatuto desta Assembleia tiveram origem no seu próprio seio.

E vamos lá que não se chegou tão longe como pretenderam alguns Deputados mais zelosos das prerrogativas do Governo do que das da Assembleia Nacional, que propuseram, logo em 1935, a supressão pura e simples da iniciativa legislativa parlamentar ...

A própria Câmara negou-se a aprovar, em 1945, a alteração, sugerida pelo Governo, no sentido de se restringir a inconstitucionalidade aos projectos que fossem causa directa de um aumento imediato de despesas, provocando este .comentário a um dos mais ilustres constitucionalistas de língua portuguesa: "Não deve ser .muito frequente, na história parlamentar do mundo inteiro uma assembleia rejeitar a proposta governamental que, de certo modo, ampliava os seus poderes" (Prof. Marcelo Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5.º edição, Coimbra, 1967, p. 541, nota 3).

Sem função, o órgão morre. Se na I Legislatura a Assembleia Nacional discutiu e votou, entro propostas e projectos de lei, 122 diplomas, e na II ainda o apreciável número de 50, nas primeiras três sessões da IX Legislatura a sua produção legislativa cifrava-se em 9 diplomas, dos quais 7 (resultantes de propostas e 2 de projectos de lei. E que a deficiência não se encontrava nesta Câmara demonstra-o o facto de na quarta sessão legislativa da anterior legislatura se ter igualado o número de diplomas apreciados nas outras três.

Não se trata agora, Sr. Presidente, de restaurar o princípio da atribuição exclusiva à assembleia política da função de legislar. Postulado da teoria clássica da separação dos poderes do Estado, que Montesquieu foi beber em Locke e que os patriarcas do constitucionalismo norte-

americano actualizaram, por forma a um tempo feliz e eficaz, no seu sistema de "freios e contrapesos", são as próprias realidades do mundo de hoje que se encarregam de o pôr em causa.

A amplitude da intervenção do Estado na vida económica e social, a tecnicidade de muitos problemas, que não obstante exigem enquadramento legislativo, a própria morosidade dos processos de trabalho parlamentares, por mais que sejam simplificados - mais do que aconselham, impõem o reconhecimento de faculdades legislativas ao Governo. O fenómeno é hoje em dia, pode dizer-se, universal: manifesta-se na Inglaterra com as orders in council, em França com as ordonnance, na U. B. S. S. com os decretos do Praesidium do Soviete Supremo, e até mesmo nos Estados Unidos mediante a prática da skeleton legislation; e, pelas razões que o determinam, creio ser tal fenómeno irreversível.

Mas o facto de o Governo ter competência legislativa não implica que à Assembleia se negue o exclusivo de certas matérias, de acordo, aliás, com técnica já entre nós consagrada, nem tão-pouco que se lhe impeça de questionar as opções tomadas pelo Governo, mediante o instituto da ratificação dos decretos-leis.

A meu ver, o dispositivo do artigo 93.º da Constituição vigente deve ser integrado, passando a abranger-se na reserva de lei a criação de impostos, determinadas matérias de direito e de processo criminal, em especial II definição das penas e das medidas de segurança, e alguns aspectos relacionados com os órgãos de nível constitucional. Quanto à ratificação dos decretos-leis, deverá ser reconhecida como princípio geral, embora em termos diversos, consoante se trate de diplomas publicados durante ou fora do funcionamento da Assembleia, termos esses que julgo preferível expor e justificar na especialidade.

Mas não se há-de parar aqui, Sr. Presidente, na consagração de faculdades de eficaz intervenção desta Câmara na definição e execução da política por que o País se regerá, em homenagem ao seu carácter representativo e à comprovada necessidade de partilhar o Poder.

Entendo que a Assembleia Nacional deve ver ampliada a sua competência em matéria financeira, de modo a fixar ela o montante máximo que poderá atingir cada um dos capítulos do orçamento das despesas, tanto ordinárias como extraordinárias; análogo é o meu modo de ver quanto à aprovação dos planos de fomento e dos tratados internacionais.

Não é este o momento próprio para me alongar na explanação das alterações que proponho. Mas não resisto a ponderar que, em assuntos com a relevância política dos que acabo de referir, um mínimo apenas de respeito pelos princípios democráticos é já suficiente para reconhecer a necessidade irremovível de interferência da Assembleia que representa a Nação.

Com tarefas e responsabilidades acrescidas, a Assembleia Nacional terá de renovar o seu estilo de funcionamento. Julgo, a este propósito, ser de introduzir no texto constitucional a partição das sessões legislativas, ampliadas na sua duração, por dois períodos, bem como a reforma do regime de funcionamento das comissões e ainda a previsão de um processo legislativo de urgência.

Parece-me que é nesta linha de dignificação e eficiência, construtivamente, portanto, que importa encarar a crise que as assembleias políticas atravessam, entre nós como em todo o mundo. Com século e meio, que este ano se completa, de existência em Portugal, a instituição parlamentar legitimamente espera, daqueles que hoje a incarnam, que lhe sejam proporcionados os meios para sobreviver e viver

Por mais que a denigram os seus adversários, a verdade é que não se inventou ainda instrumento mais útil do que as assembleias representativas, desde que funcionem com autenticidade e o devido doseamento, para conter o Poder nos seus limites próprios e assegurar, na medida do que é humanamente possível, o bom governo dos povos.