2078 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 103
Mas a tramitação da proposta permitiu-me, porém, o período de reflexão que me era indispensável para ponderar o texto governamental, no conjunto das suas disposições e nas implicações mais ou menos graves que delas derivam, não só em relação ao futuro do País e ao funcionamento das suas instituições políticas, mas ainda, também, relativamente à sua missão histórica e ao papel que lhe deve caber desempenhar na vida do mundo. Julgo poder condensar as orientações dominantes da proposta neste tríptico essencial:
Ampliação das liberdades e garantias individuais; Reforço dos poderes da Assembleia Nacional; Novos preceitos em relação ao ultramar.
No primeiro aspecto a proposta assenta numa base fundamental:
A eminente dignidade do homem com as inerentes liberdades inseparáveis do seu destino e dos valores transcendentes de que é portador.
Inscreve-se no artigo 8.º o dever de o Estado assegurar o bem-estar social e de garantir a todos os cidadãos o nível de vida de acordo com a dignidade humana; e ainda os n.01 8 a 11 do mesmo artigo regulam, em sentido liberal, a prisão preventiva, a não retroactividade das sanções penais, a instrução contraditória, e institui a inadmissibilidade das penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da Uberdade pessoal, desde que tenham carácter perpétuo, duração ilimitada ou forem adoptadas por períodos indefinidamente prorrogáveis.
Mas a definição dos direitos individuais e das suas garantias tem limites que importa considerar, e entre eles estão a liberdade dos outros e as exigências de interesse colectivo. A liberdade sem autoridade conduz à anarquia, mas a autoridade que desconhece os direitos humanos é igualmente condenável, por conter em si os germes do despotismo, incompatível com a nossa visão da vida e a nossa concepção do mundo.
Vozes: - Muito bem !
O Orador: - A ordem, a harmonia, o progresso social, repousam no equilíbrio entre dois princípios, e estes são, segundo creio, fundamentos basilares da proposta.
Mas o Governo não se orientou apenas no caminho da concessão de liberdades acrescidas e das largas definições de princípios; comporta-se com autenticidade e assegura-lhes concretização efectiva. Demonstram-no as propostas de lei da imprensa e de consagração das liberdades religiosas, ambas pendentes da apreciação da Assembleia e que vão constituir objecto dos seus trabalhos na reunião extraordinária para que foi convocada e que, presentemente, se encontra em curso. Concluirei a minha apreciação desta parte da proposta afirmando que a liberdade não pode confundir-se com a licença; que os direitos fundamentais não excluem a disciplina colectiva, e que, em caso algum., pode cercear-se a luta da sociedade pela sua sobrevivência. Esquecê-lo é conceder título de legitimidade à subversão, às empresas de desmoralização, ao desregramento da violência, ao desmando da indisciplina e da desordem.
As sociedades que se não defendem demitem-se, capitulam, entregam-se às renúncias do abandono e terminam nas confusões do caos.
Mas a proposta inspira-se também no intuito de fortalecer os poderes da Assembleia e ampliar a sua esfera de competência como órgão dia soberania e ainda como colaboradora privilegiada do Governo na realização do bem comum e na efectivação do interesse nacional. Dentro desta orientação evitou-se, sem dúvida, o risco do restabelecimento do sistema parlamentar que durante mais de um século regeu o País e o conduziu à desordem administrativa, ao marasmo económico, ao descalabro financeiro, à instabilidade dos governos, à diminuição da autoridade do Estado, ao desprestígio externo, à paralisia das instituições e à instabilidade da sua acção.
As lições de história são, a este respeito, persuasivas, e a experiência faculta-nos ensinamentos que importa ter presentes.
O Sr. Casal Ribeiro: - Muito bem!
O Orador: - O equilíbrio dos órgãos de soberania, a delimitação da sua competência recíproca, a independência de todos eles, a coordenação da sua actividade na execução solidária e construtiva das grandes tarefas colectivas, eis algumas das características da proposta, indubitavelmente dignas de adesão e de aplauso.
Dentro desta linha de pensamento se insere a enumeração das matérias que têm de constituir necessariamente objecto da lei, e representam, por isso, prerrogativa que pertence à Assembleia de modo exclusivo. Citarei especialmente a criação de impostos, que têm de ser votados ou ratificados por ela, de acordo com as suas atribuições tradicionais e com as raízes históricas da instituição.
Mas a parte mais relevante da proposta de lei em debate diz respeito ao ultramar e reveste-se, por isso, da maior transcendência e do mais profundo significado nacional.
Já se definiu o momento crucial que estamos vivendo como de renovação na continuidade, ou seja da permanência no essencial, sem prejuízo das actualizações que se imponham, ou dos aperfeiçoamentos que se tornem aconselháveis. As ideias não cristalizam em formas imutáveis e a evolução constitui lei da vida, quer dos indivíduos, quer das sociedades. Ajustar as instituições às exigências das circunstâncias, adaptá-las às realidades concretas, procurar novos caminhos, novos conceitos, representa orientação útil e rumo criterioso, desde que se salvaguarde o que é permanente e válido e que, por isso mesmo, representa património intangível e valor que não pode ser alienado.
Como militar e português, educado no culto da sua Pátria, na ideia da sua unidade, na consciência dos vínculos indissolúveis que ligam as suas parcelas e as congregaram ao longo dos séculos na solidariedade de um destino comum, não poderia aceitar qualquer solução contrária à formação do meu espírito, às ideias que me orientam ou aos princípios que professo e de que não posso abdicar.
Conheço, por imperativo da minha profissão, as províncias portuguesas de África e a opulência das suas riquezas, a vastidão das suas potencialidades, o nível do seu desenvolvimento, o grau da sua integração racial, as promessas do seu futuro; conheço os sentimentos profundos das populações de além-mar, o seu orgulho nacional, a sua vontade indomável de permanecerem portugueses e de participarem deste conjunto uno e disperso, mas animado do mesmo espírito, impregnado de valores idênticos e cônscio da contribuição valiosa que pode dar à causa do Ocidente e ao universalismo da civilização e da cultura. Mas, sobretudo, foi-me permitido apreciar de perto e directamente a abnegação heróica das nossas forças armadas, a sua inabalável determinação, o sacrifício da nossa juventude, o tributo de sangue que está pagando generosa e perdulàriamente, em holocausto à Pátria e pela sua integridade.
Ora, a proposta, quer no seu texto formal, quer no seu espírito inspirador, corresponde ao sentimento colectivo